segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Depois do Verão (Long After Summer), de Robert Nathan - RESENHA #32

Depois de uma onda de livros de horror, precisava descansar o cérebro de tanta tensão rsrsrs. Não poderia ter feito escolha mais acertada ao pegar Depois do Verão. Penso que em outras circunstâncias, teria desdenhado o livro, o que me leva a pensar no quanto pesa o fator circunstancial na hora de avaliar uma obra. Qualquer dia, tendo tempo, faço uma postagem especialmente para explicar os critérios que utilizo, como também definir o perfil dos livros que recebem de uma a cinco estrelas.

Depois do Verão (1948), do norte-americano Robert Nathan, é um dos romances mais despretensiosos que já li. Provavelmente tenha sido isso mesmo o que mais me agradou nele. Sendo aparentemente uma história trivial, concentra uma beleza peculiar, típica do autor, e que a crítica costuma chamar de “Nathan’s touch” ou “toque de Nathan”. A obra dele ganhou fama no Brasil graças à tradução que Erico Verissimo fez do romance O Retrato de Jennie. O “toque de Nathan” é... como posso dizer... encantador! Mas a percepção desse encanto dependerá sempre do grau de sensibilidade do leitor. Diante de um amante da poesia, é bem provável que a obra de Nathan seja um deleite, pois a mesma se caracteriza pela delicadeza de sua abstração. Como não sou muito afeito à poesia, não me deleitei tanto com a prosa poética deste livro; não obstante, aproveitei o suficiente, de maneira que, para mim, Depois do Verão foi uma espécie de terapia.

A trama não tem nada demais além de certa excentricidade. A força do livro está no minimalismo do autor que, de maneira simples, constrói uma narrativa que preza pela simplicidade e pureza dos sentimentos. Impossível não aludir ao Romantismo. Nathan foi, sem dúvida, um neorromântico. A singeleza e graciosidade de seu estilo, como também uma tendência pessimista acompanhada de descrições melancólicas, vêm confirmar tal observação. A premissa do livro parece ser a despreocupação dos jovens com o fatalismo do mundo real. O narrador-personagem é um verdadeiro pensador da fragilidade humana e efemeridade da vida. Seu nome não é revelado, sugerindo talvez ser o próprio Nathan que, assim como ele, gostava de velejar em Cape Cod.

Nosso narrador anônimo é um solteirão de vida simples e tranquila. Precisando de uma secretária para cuidar dos serviços domésticos, ele decide consultar seu amigo Manuel Pereira e Josie, sua esposa. O casal Pereira receberia naqueles dias uma órfã, prima de Josie; mas por ter apenas 14 anos, Joana é logo descartada para o trabalho. Quando o narrador repentinamente adoece, Manuel acaba mandando Joana para cuidar do amigo. A garota, em sua extrema simplicidade, mostra-se uma companhia agradável e bastante responsável no cumprimento das tarefas do lar. A seu amo, porém, não passam despercebidas as misteriosas circunstâncias em que apareceu aquela parenta ignorada dos Pereira, como também a reação positiva da menina estando em sua casa, na companhia sua e de Penny, uma adorável cachorrinha. Joana não aparenta ter estima pelos parentes, e estes tampouco por ela.

Por intermédio de seu amo, Joana conhece Jot, um garoto da sua idade. E aqui não poderia deixar de comentar a puerilidade do elemento amor na obra de Nathan. Não se reconhece nela a sensualidade e lascívia do amor carnal. O amor se manifesta como um elemento assexuado. Que não se confunda, contudo, puerilidade com ingenuidade. O que ocorre em Depois do Verão é uma manifestação contrária ao fatalismo do mundo, a partir de uma busca desenfreada pelo “belo”. É como diz o narrador: “— Talvez seja porque há tanta dor neste mundo que eu não posso suportar a perda da menor parcela de beleza.” (pág. 162). Nathan mostra-se um estilista da palavra, interessado tão somente em expressar suas impressões do mundo. Quando o narrador reconhece a felicidade despreocupada que sentem Joana e Jot, lamenta saber, mediante suas próprias experiências, que tudo aquilo seria passageiro, uma emoção que provavelmente não duraria mais que um verão.

De fato, quando Joana, sem esperar, é assolada por esse fatalismo tão combatido por Nathan, não encontra forças para seguir em frente. Sua mente maquinalmente realiza um retrocesso e Joana começa a voltar no tempo, dia após dia, sempre no sentido inverso, até chegar finalmente ao momento de encarar seu passado, antes de chegar à casa dos Pereira. Sim, deixei aqui uma lacuna em relação à causa desse sofrimento, do qual Joana foge com a estratégia involuntária de que já falei; pois não quero dar spoiler! Mas de antemão, previno aos leitores que se preparem às várias lacunas deixadas por Nathan. Depois do Verão é daqueles livros que não encerram em si mesmos. O leitor chegará ao desfecho desejando saber uma porção de coisas, a começar pelo propósito desse livro. Parece uma história sem finalidade alguma ou mesmo um fragmento de uma obra maior. Você termina o livro e não acredita que acabou.

Uma curiosidade engraçada é que Robert Nathan tinha uma superstição de que somente seus títulos com três palavras fariam sucesso, talvez por sua fama ter despontado com One More Spring. Quando traduzido, Long After Summer deveria chamar-se “Muito Depois do Verão”, mas os editores brasileiros optaram por seguir a superstição do autor ao escolher o título Depois do Verão. Como disse, a leitura foi mesmo uma terapia. Mesmo tendo gostado, confesso que fiquei bastante intrigado com as lacunas deixadas por Nathan. O desfecho da história também não me pareceu muito acertado, beirando a incoerência. No mais, foi um livrinho bonitinho, sensível e poético, mas bastante melancólico também.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Mais Livros! - OUT/2016




Depois que a editora Pedrazul lançou aquela belíssima edição d’A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, comecei a pesquisar mais sobre a autora e, em consequência disso, fiquei animado a adquirir suas outras obras. Não sabia que tinha publicado tantos romances. Na verdade, sua obra, que é muito vasta, compreende muitos outros gêneros. Concentrei-me em reunir sua prosa de ficção, que é o que sempre me interessa em qualquer autor. Mas a verdade é que seria praticamente impossível obter os romances da dona Júlia, não fossem os louváveis esforços da editora Mulheres.

A editora Mulheres, de Santa Catarina, foi fundada em meados dos anos 90 por três professoras aposentadas da UFSC. A proposta da editora era relançar obras esgotadas de escritoras brasileiras clássicas, como Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Foi através dessa obra que conheci a editora Mulheres, mas só há pouco tempo descobri que eles haviam relançado quase todos os romances de Júlia Lopes de Almeida, alguns deles já esgotados. Após a morte de Zahidé Lupinacci Muzart, que era a principal responsável pela editora, as publicações foram interrompidas, mas, atualmente, é possível adquirir os títulos do catálogo através do e-mail “gerusabondan@gmail.com”. Assim, outubro foi quase que totalmente dedicado à autora de A Falência.

Direto com a editora, adquiri os romances: A Família Medeiros; A Viúva Simões; Pássaro Tonto; e O Funil do Diabo, que era inédito em livro. Deles também adquiri a coletânea de contos Ânsia Eterna, que contém o famoso conto “A caolha”. As obras esgotadas, tive que adquirir por outras fontes. Memórias de Marta, achei na Livraria Cultura; A Silveirinha, encontrei na Estante Virtual. Não consegui a edição deles de A Falência; por isso, acabei comprando uma edição de 1978. A editora Mulheres ainda possui em catálogo Cruel Amor e Correio da Roça, que é romance epistolar. O primeiro eu já tinha na minha “Coleção Saraiva”; o outro, acabei comprando antes, no começo do mês, numa edição de 1987.

A editora Mulheres ainda me mandou uma cortesia: Os Papéis do Coronel, único romance publicado pelo brasileiro Harry Laus. A edição é bilíngue (português/francês), pois o livro parece ter sido publicado primeiro na França. Adorei o presente!

Passando às outras aquisições, acabei aproveitando a dica de um leitor aqui do blog (Hélio Leite) que me informou sobre uma edição ampliada dos Cordéis de Patativa do Assaré, lançada pela UFC em 2012. A nova edição, que não poderia deixar de adquirir, possui 5 outros folhetos, os quais pretendo ler assim que possa, para fazer uma postagem complementar à que já fiz. Será uma dessas postagens extraordinárias que aparecem a qualquer momento, ok?

Outra grande aquisição foi a Obra Completa de Cruz e Sousa (José Aguilar, 1961). Mesmo não sendo muito afeito à poesia, tenho interesse em conhecer nossos poetas mais clássicos. Dessa forma, vez por outra, incluirei algo do tipo nas compras do mês, pois minha estante de poesia é bastante escassa rsrsrs. Finalmente, obtive as obras de um autor que fazia falta na minha estante: França Júnior, contemporâneo de vários escritores queridos. Consegui boa parte de sua produção enquanto dramaturgo na edição Teatro de França Júnior, que o MEC lançou em 2 volumes, em 1980. Essa edição pertence à coleção “Clássicos do Teatro Brasileiro”, da qual já tenho o teatro de Joaquim Manuel de Macedo, Arthur Azevedo e Qorpo Santo.

Interessei-me por adquirir os Folhetins que França Júnior publicou na “Gazeta de Notícias”, e que foram reunidos pelo editor Jacintho Ribeiro nos Santos num volume publicado em 1915. Mas fiquei encantado mesmo foi com a surpresa que tive. Minha edição trouxe dois recortes do jornal “A Gazeta”, dos anos 50, com artigos de Brito Broca, comentando justamente os Folhetins de França Júnior. Fiquei pensando: quem teria posto os recortes lá? Certamente algum estudioso da Literatura. O próprio Brito Broca? Viajei agora, né rsrsrs? Infelizmente, o livro não traz assinatura do antigo dono. E dificilmente vocês me verão repetir isso rsrsrs. Quem quer que tenha sido, achei genial! O segundo artigo traz até algumas considerações sobre leituras. Brito Broca cita Rosa, de Joaquim Manuel de Macedo; Sonhos d’Ouro, de José de Alencar; e O Garimpeiro, de Bernardo Guimarães. Meus três autores românticos favoritos... Parece coisa do destino mesmo rsrsrs.

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O Exorcista (The Exorcist), de William Peter Blatty - RESENHA #31

O Exorcista foi um dos meus piores terrores de infância. Lembro que morria de medo quando via as chamadas do filme na TV. Engraçado como o medo, de certa forma, nos atrai. Mesmo morrendo de medo, tinha aquela vontadezinha de assistir, uma curiosidade teimosa. Ficava ouvindo meus amigos comentando, prestava sempre atenção, imaginava as cenas na minha cabeça e me assustava só de pensar. Um dos meninos tinha conseguido o livro, numa edição bem antiga da Nova Cultural. Lembro que nenhum de nós teve coragem de ler, nem mesmo eu que era o mais afeito a livros.

Finalmente, mais de 10 anos depois, criei coragem suficiente para encarar o livro e o filme. Tinha como uma questão de honra superar esse trauma de infância rsrsrs. Mas, com toda sinceridade, foi mais difícil do que pensei.

É bem provável que a inevitável associação da recente experiência com as lembranças da infância tenha contribuído bastante com o medo que senti. Provavelmente, se nunca tivesse sequer ouvido falar na trama, não teria sido tão abalado pela experiência. Quando peguei o livro pra ler, parecia estar voltando no tempo. Não tinha como não me sentir incomodado: um repentino pavor, um tremor nas mãos, um gelo nos pés... Xi... Fazia tempo que não sentia isso rsrsrs. Mesmo assim, não desisti daquilo a que me propusera e fui ficando menos tenso com o decorrer da leitura, mas não isento daquela apreensão ao menor ruído, a qualquer movimento inesperado. Ui rsrsrs! Estou rindo agora, mas, no ato da leitura, tive medo mesmo.

Estou me perguntando se preciso mesmo contar o enredo. Todo mundo já conhece essa história, não? Mas para quem tiver esquecido, O Exorcista relata o caso de uma garotinha de doze anos, que é possuída pelo demônio (ou não?). Blatty realiza um esforço admirável na construção de uma trama que pende para duas soluções: uma natural e uma sobrenatural. Sempre que Regan apresenta um novo sintoma de possessão, uma explicação científica logo nos aparece como uma réplica. Há quem diga que esse debate não tem solução no livro, mas somente uma pessoa inteiramente cética não chegaria à conclusão de que Regan estava mesmo endemoninhada. Não quero abrir parêntese para falar de religião, mas faço questão de esclarecer que meu entendimento da obra se fundamenta na fé que professo.

O Exorcista, mais do que um livro de terror, é uma obra que pretende discutir o que é “fé”. Chris, a mãe de Regan, é uma atriz ateia. Quando percebe que a Ciência não tem recursos para “curar” sua filha, sendo inclusive aconselhada pelos próprios médicos a buscar uma solução espiritual, passa a acreditar no sobrenatural. Ainda que não admita a existência de Deus, alimenta sua fé numa força invisível e misteriosa aos homens. Por outro lado, o autor nos apresenta Damien Karras, um padre cuja fé está abalada. Procurado por Chris, o padre Karras, que também é psiquiatra, consente em examinar Regan. Diferente de Chris, o padre não acredita na hipótese de possessão. Suas explicações são sempre amparadas pela lógica natural da Ciência. O próprio “exorcismo” aplicado a Regan é realizado mais como medida científica que espiritual. Daí, não poderia deixar de destacar a presença do fator Ciência no livro.

O autor, mesmo baseando-se num caso real, faz uma pesquisa científica impressionante. Algumas passagens do romance são verdadeiras aulas de psiquiatria, focando sobretudo em distúrbios com características extrassensoriais. É perceptível também, claro, a pesquisa religiosa, especialmente no que diz respeito a satanismo, demonologia e exorcismo. Todas essas pesquisas dão respaldo para que Blatty persista no combate entre a Fé e a Ciência, na tenuidade entre o natural e o sobrenatural. Nem preciso dizer que a trama é muito bem realizada. Quem viu o filme deve lembrar-se da riqueza de conteúdo do enredo. Mesmo sendo muito fiel ao livro, o filme apresenta algumas variantes que, ao invés de prejudicar a trama, aperfeiçoam-na quase sempre. E agora podemos nos concentrar nos problemas do livro.

Logo que comecei a leitura d’O Exorcista, percebi que faltava ao autor técnica literária. Não parecia que lia um romance, mas um roteiro de cinema, o que me leva a crer que, desde o princípio, o objetivo de Blatty era levar O Exorcista às telas. A obra traz diálogos extensos e muitas vezes maçantes, especialmente na primeira metade. Em várias passagens, reconhecemos falas que poderiam ter sido suprimidas, por não trazerem nenhuma relevância à obra. Algumas conversas impacientam o leitor, principalmente a partir do momento em que a narrativa assume uma roupagem de romance policial. Isso ocorre após a morte de um personagem secundário, o que abre espaço para uma fervorosa investigação por parte do detetive Kinderman, que me chateou bastante com suas inacabáveis perguntas. Não tenho experiência com literatura policial, mas se nela encontrar personagens impertinentes como esse Kinderman, vou passar longe do gênero rsrsrs.

Não poderia deixar de admitir que, sim, à medida que o romance se desenrola, a técnica literária da qual senti falta nos capítulos iniciais, vai surgindo paulatinamente e ganhando força. É bastante perceptível o crescimento ou evolução da obra do início ao fim. Nem preciso dizer que o desfecho do romance é de tirar o fôlego. Contudo, não vi a grande obra-prima que tanta gente falava. Na verdade, penso que, se não fossem os temas delicados que aborda com frieza (as obscenidades, as profanações, além de certos exageros com relação à possessão de Regan), este livro não teria causado tanto alvoroço. Mas vejam bem! Estou falando do livro. O filme, que condensa muitos excessos da obra original, principalmente no tocante à sintetização dos diálogos, é realmente fabuloso, tanto que revolucionou a indústria do Cinema de horror.

A escrita apelativa de Blatty é revoltante. Fico imaginando a reação de um cristão rsrsrs... O excesso de cenas provocantes, entremeada de palavrões e gestos obscenos, torna a leitura uma experiência... digamos... repugnante. As descrições das profanações, aparecidas na igreja próxima à casa de Chris, confirmam a intenção do autor de chocar o leitor. Enfim, são tantas baixezas, censuradas até pelo filme, que acabam não tendo outra função que não a de indignar. O aproveitamento das questões relativas à fé e ao mal que existe em cada um de nós acaba compensando e até justificando a razão de ler este livro.

Pronto. Penso que já falei tudo o que tinha planejado, faltando apenas comentar a última frase, que tem intrigado tanta gente. Se você não quiser saber da frase, pare por aqui e tchauzinho! Quem continua lendo este post, ou já leu o livro ou não se importa que eu revele a frase, que é: “No ato de esquecer, eles tentavam se lembrar.” Assim como deve ter acontecido com todo mundo que chegou ao fim do livro, julguei estranha essa frase que aparece após a trivial conversa entre o padre Dyer e o detetive Kinderman. Mas pensando um pouco, observando o rumo que tomara a conversa, totalmente distante do recente drama, imagino que o autor tencionava revelar que embora os personagens parecessem “esquecidos” dos recentes acontecimentos, eles não conseguiam tirá-los do pensamento. Se você entendeu de outra forma, compartilhe nos comentários! Enfim, acabou. Finalmente virei essa assustadora página!

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Pelo Sertão, de Afonso Arinos - RESENHA #30

E sobreveio em mim uma sede de regionalismo, mais ou menos alimentada quando li A Missão e Lendas Brasileiras. Precisava, contudo, daquele regionalismo puro e real dos escritores sertanistas dos finais do século XIX, sentir o cheiro de terra nas páginas, apreciar a beleza das paisagens do interior. Não poderia ter escolhido momento mais propício para ler Pelo Sertão (1898), de Afonso Arinos. Estava precisando mesmo disso. Agora, o que dizer? Que experiência! Que livro encantador!

Confesso que comecei a leitura já armado com dicionário em punho, porque obras regionalistas não são nada fáceis de ler, especialmente quando retratam os tipos e costumes de lugares que o leitor desconhece. Pelo Sertão se encaixa nessa linha de obras que prezam por uma linguagem típica, o que pode significar uma dificuldade para um leitor menos afeiçoado a esse tipo de literatura. Mesmo não podendo abrir mão de consultar o dicionário ocasionalmente, o prazer da leitura em nada se perdeu. Afonso Arinos tem um estilo sedutor, que alterna do realismo ao romantismo e vice-versa. Ora você tem a rusticidade do sertão e dos tipos que o povoam, ora deparamo-nos com descrições e observações cheias de lirismo.

Como o autor mesmo adverte em nota preliminar, falta ao livro uma unidade, o que se explica no fato de os contos terem sido escritos em diferentes momentos e ocasiões. Os estilos variam, de maneira que dentre os 12 contos que compõem a coletânea, encontramos além do conto regionalista tradicional, textos que se atentam à observação de paisagens e filosofias de vida, à quase maneira de crônica. Impossível não ser tomado pela beleza da escrita de Arinos, seja narrando em 3ª pessoa, ou mesmo quando seus “tipos do sertão” se fazem contadores de histórias. Nenhum dos 12 contos me pareceu ruim, mas julgo pertinente, em se tratando de uma coletânea de contos, assinalar as histórias que me causaram melhor impressão.

A c0letânea abre com “Assombramento” que é, por assim dizer, uma peça antológica. O autor relaciona com louvor o regionalismo e o fantástico. A comitiva de Manuel Alves passa por uma velha casa abandonada, considerada assombrada. Contrariando o medo e a superstição geral entre seus homens, ele decide passar a noite sozinho no interior da casa. O conto é impregnado de uma atmosfera sobrenatural: passos, uivos, vozes, visões, etc. É admirável o embate entre o real e o sobrenatural. “A esteireira” é uma dessas cenas trágicas do sertão. Ana Esteireira, chamada assim por causa do pai que trabalhava fazendo esteiras de taquara, é uma mulata lavadeira que namora Filipinho, um tipo atrevido e perseguido pela polícia por seu mau comportamento. Trata-se de um conto que aborda o crime passional com bastante crueza, prezando por cenas violentas, não podendo deixar de ter ainda um trágico desfecho. É louvável como o autor consegue amenizar a situação trágica, valendo-se de elementos da natureza, que a tudo poetizam. Afonso Arinos demonstra grande preocupação com a linguagem, sempre limando o final de cada história com o maior cuidado.

“Manuel Lúcio” conta o caso de um órfão que fica sob proteção do patrão de seu finado pai. Sempre fiel ao seu senhor, em homenagem e respeito à lembrança paterna, Manuel trabalha incansavelmente em defesa dos patrões. Sem que perceba, acaba se apaixonando por Barbinha, a filha de seu amo. Não tendo coragem de revelar sua afeição pela jovem, Manuel limita-se a vazar seus sentimentos em trovas do sertão. É um belíssimo conto romântico, onde se dá o confronto entre a dedicação sagrada e o peso de um amor provavelmente impossível. “A fuga” narra os esforços de dois escravos para escapar do cativeiro. Isidoro e Bento realizam uma difícil fuga, tendo a natureza como única aliada. “A fuga” traz o subtítulo “fragmento de um conto histórico”, mas é tão bem realizado em sua forma, que o leitor sente-se satisfeito com ele, ou seja: não há necessidade de acréscimos, pois “A fuga” é um conto completo em todos os sentidos, uma verdadeira joia literária, um dos pontos altos do livro. Em diferente situação, temos “O contratador dos diamantes” que, também dado como “fragmento”, termina exigindo uma continuação. É mais uma premissa que um conto. De fato, Afonso Arinos sabia disso; tanto, que aproveitou o argumento para uma peça teatral de mesmo nome. “O contratador dos diamantes” talvez seja o conto que mais destoa do conjunto, por sua ambientação aristocrática.

“Joaquim Mironga” e “Pedro Barqueiro”, subintitulados de “tipo do sertão”, encerram a coletânea com mestria. Ambos reproduzem histórias contadas por caboclos do sertão, naquele linguajar matuto, repleto de marcas de oralidade. É interessante a estratégia utilizada pelo autor na construção desses contos: ambos têm narradores que ficam em segundo plano, uma vez que os caboclos que contam as histórias não são os narradores “oficiais”, de maneira que suas falas (que compõem quase que a totalidade dos contos) aparecem entre aspas, para diferir da voz dos narradores propriamente ditos, que acabam tendo pouquíssima relevância. Nem sei se deu pra entender isso que eu disse rsrsrs Mas em suma, esses dois contos possuem dois narradores cada um. O primeiro é o relato de Joaquim Mironga, que atesta a coragem e bravura do filho de seu patrão, diante de uma situação de combate. O outro quem conta é um caboclo chamado Flor que, quando moço, foi designado pelo seu patrão a prender Pedro Barqueiro, um escravo fugido, temido por todos por sua valentia. Flor e Pascoal (amigo dele que também é designado para a mesma tarefa) vão ao encalço do Pedro Barqueiro, sendo inevitável um difícil combate. Esse conto merece observação maior no que diz respeito a um possível elemento fantástico perceptível ao final do enredo.

Teria algo a dizer sobre todos os outros contos que não citei, porque, como disse, nenhum é ruim, cada um é pintado de sutil beleza e animoso colorido. Contudo, agora que estou conseguindo ser mais sintético com minhas resenhas, não quero descuidar desta rs! Não dei nota máxima à obra por pouquíssimos detalhes, que vão desde a falta de unidade do livro até a predominância de circunstâncias soturnas. Não obstante tantas páginas tristes, Pelo Sertão certamente foi escrito com muita felicidade.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Menina Má (The Bad Seed), de William March - RESENHA #29

Quando li a sinopse de Menina Má, meses atrás, tive certeza de que precisava ler aquele livro. Sendo sincero, não sou muito afeito à literatura de horror e afins. Prefiro o horror enquanto elemento secundário. No caso de Menina Má, felizmente, o autor não se limitou a impressionar o leitor com cenas violentas. É complicado afirmar qual seria a proposta ou propósito da obra. O autor alega tê-la escrito com fins puramente comerciais, o que é muito difícil de crer. A diversidade de temas delicados contidos no livro denota mesmo uma mente doentia e atormentada. Quando se lê qualquer coisa sobre William March, é possível confirmar essa observação.

Em abril de 1954 é lançada a primeira edição. Menos de um mês depois, falece William March. Mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Os mais céticos dirão que nada, mas me custa acreditar que concluir uma obra desse feitio não deixasse qualquer pessoa profundamente perturbada. O próprio leitor perturba-se lendo este livro. A leitura dá-se numa atmosfera fria e pesada. O leitor sofre por sua empatia com Christine, e indigna-se com a indolência de Rhoda. O autor mantém o suspense quase sempre ininterrupto. A escrita de William March é simples, inteligente e direta. As digressões ficam por conta do leitor que vê-se obrigado a, ocasionalmente, fazer intervalos para digerir o conteúdo do romance.

Rhoda é uma linda garotinha de oito anos, daquelas que usam vestidinhos fofos e fazem tranças nos cabelos; filha de Chistine e Kenneth, um casal bastante convencional, onde o pai é bastante ausente por conta do trabalho, e a mãe uma típica senhora do lar. Rhoda, por outro lado, é uma criança peculiar. Suas preocupações não consistem em jogos ou brinquedos, mas em conseguir tudo o que quer e ser sempre a melhor: a mais adorável e admirável das crianças. Assim, muito estudiosa e organizada, ela tem tudo sempre em ordem. A impecável garotinha é endeusada pelos adultos tanto quanto odiada pelas crianças.

Um dos maiores prazeres de Rhoda é ser premiada com objetos materiais, pois despreza carícias e demonstrações de afeto. É singular a disciplina com que ela estuda até mesmo as lições bíblicas da escola dominical, mas sempre com tenção de ganhar algum prêmio por seu destaque. Quando perde a medalha de melhor caligrafia da turma para Claude, um garoto magrelo e pálido, Rhoda fica inconformada. Daí, num dia de piquenique da escola, Claude é encontrado morto entre as estacas de um velho cais. Ao que tudo indica, o garoto caiu na água e afogou-se. A medalha de caligrafia, contudo, não fora encontrada.

É admirável a habilidade de March em conduzir o romance de uma forma que não é exagerada nem apelativa. Muito cuidadoso com as passagens violentas, ele inicialmente não se presta a narrar as maldades de Rhoda, preferindo contá-las por outros artifícios. À medida que a narrativa vai progredindo, as cenas vão ficando mais violentas e a tensão alcança maior grau a partir do momento em que Christine percebe o quanto sua filha pode estar envolvida com os recentes acontecimentos que tanto têm lhe abalado. A terrível dúvida leva-a a observar Rhoda atentamente, como também desperta seu interesse por casos policiais semelhantes. Com a desculpa de estar fazendo pesquisa para um romance, Christine toma contato com vários casos de assassinos em série.

A atenção dada pelo autor aos casos examinados por Christine acaba comprometendo um pouco o suspense do livro, mas nada que tire o interesse do mesmo. Outro recurso que merece destaque é a composição de personagens secundários, como Monica Breedlove (vizinha de Christine) e Leroy (zelador do prédio onde moram Cristine e Monica). Não são figuras simples, mas de considerável relevância para a trama. Monica é uma feminista que vislumbra o bem comum. É uma grande observadora e amante da psicanálise. Tem um comportamento um tanto radical e tendências incestuosas. Sua sexualidade é bastante controversa, mas não penso que ela seja homossexual, como alguns acreditam. Leroy é o que pode-se chamar de “revoltado”: aquele cara que acabou como zelador e que alimenta profundo ódio pelos que são financeiramente bem-sucedidos. Mas o grande interesse que ele desperta é por conta de sua perspicácia, que chega a descobrir a maldade por trás de Rhoda.

Passando aos senões do livro, além dos já citados casos de assassinos em série, outra coisa que me incomodou bastante foi um determinado crime cometido por Rhoda, que me pareceu muito improvável. Não quero revelar aqui, para não dar spoiler, mas se alguém quiser discutir nos comentários, sinta-se à vontade! [Para quem já leu, estou me referindo ao caso do incêndio!] Trata-se de um crime que, diferente dos outros, é narrado no tempo real do romance. Sinceramente, achei muito mal contado e não me convenceu. Foi o único grande deslize (que eu percebi) do autor que, felizmente, logo reassume sua postura de grande escritor e segue nesse ritmo até o desfecho da narrativa que é, sem dúvida, chocante.

Fiquei impressionado com o final do livro, que é dos mais irônicos que já li, ao estilo O Mulato, de Aluísio Azevedo. O interessante é que Menina Má encerra pedindo uma continuação. Não tem como não querer saber o que vem depois. Mas quanto a isso, o leitor terá de se conformar com suas próprias hipóteses e suposições. No mais, permanece segunda lacuna na eterna dúvida: a maldade dos homens é adquirida do meio onde vivem, ou consiste numa semente herdada de geração a geração?

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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