segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A Missão, de Ferreira de Castro - RESENHA #24

A Missão é uma coletânea de novelas do português Ferreira de Castro, autor bastante citado quando se fala em Neorrealismo. Publicado em 1954, A Missão reúne três narrativas que, embora designadas como “novelas”, são na verdade: 1 novela (A Missão); 1 romance (A Experiência) e 1 conto (O Senhor dos Navegantes). Trata-se de um conjunto fabuloso e admirável. Após concluir a leitura, senti-me saturado de literatura. Foram tantas impressões, tantas informações, tantas sensações... Devo confessar que esse livro mexeu comigo bem mais do que eu previra, provocando um sem número de diferentes emoções ao longo da leitura, o que foi uma grande surpresa, por se tratar de um livro moderno. Achei simplesmente fabuloso e arrebatador. Não foi uma leitura fácil. A dificuldade vai além da linguagem do autor, que é bastante complexa; está especialmente em acompanhar o ritmo do Ferreira de Castro, com todos os seus artifícios e recursos expressivos tão fascinantes. Parecia que estava tomando uma bebida forte demais; não aguentava consumir muito. Toda vez que pegava o livro, demorava um pouco até me habituar ao ritmo do autor, como se fizesse um mergulho e precisasse de tempo para me habituar àquelas águas. É complicado explicar minha reação diante dessa obra, porque ora ela me enternecia, ora me revoltava profundamente. Por diversas vezes, senti-me pequeno diante de uma onda gigantesca, incapaz de conter as furiosas vagas, consciente de que deixei passar mais informações do que eu mesmo acredito. Por outro lado, inspirei-me. Eis uma leitura que me suscitou diversas ideias, me fez pensar em tantas questões, além de me provocar impressões extasiantes. Deu até vontade de escrever rsrsrs.

Cabe aqui confessar que todo esse entusiasmo expresso se deve ao romance “A Experiência”, segunda narrativa do livro. “A Missão” e “O Senhor dos Navegantes” são formidáveis; mas “A Experiência” é simplesmente inefável.

“A Missão” é uma novela que trata de autoconsciência. Mounier pertence a uma ordem de padres missionários, mas não se sente confortável com a condição de celibatário, dada a dificuldade de refrear seus desejos carnais, os quais julga bastante naturais. Esse desconfortável conflito interior acende escrúpulos em sua mente, os quais entendo como uma reação expiatória ou uma necessidade de desculpar-se com a própria consciência. Ao ver que o Superior mandou pintar em letras garrafais a palavra MISSÃO no teto do edifício, foi reclamar com ele, alegando que tal atitude poderia pôr em risco a vida de centenas de inocentes. O caso é que o edifício missionário foi construído ao mesmo tempo, e com igual estrutura, que um convento de freiras, que nunca chegou a ser convento, pois fora transformado em fábrica. Vale lembrar que a narrativa se passa numa aldeia francesa, no período da Segunda Guerra Mundial. O receio de Mounier é que os alemães intentem explodir a fábrica que, a seu ver, ficaria mais protegida por conta da circunstância de que, vista de cima, a mesma é exatamente igual ao edifício missionário. A pintura identificaria muito facilmente em qual dos dois prédios funcionava a fábrica, onde trabalhavam centenas de operários, responsáveis pelo sustento das muitas famílias daquela aldeia. O Superior fica intrigado com as colocações de Mounier; decide fazer uma assembleia com todos os padres dali, para saber as opiniões deles. A situação se complica quando fica visível a falta de consenso entre os religiosos, pois muitos temem o bombardeamento da missão. O debate entre os padres através dos argumentos desenvolvidos é o que torna interessante essa narrativa. O fato do Superior, tal como Mounier, tender mais para a proteção da fábrica por uma questão de expiação de antigos pecados, revela o espírito crítico do autor, propondo a questão: “as pessoas fazem o bem por se compadecerem do próximo ou para se sentirem melhor consigo mesmas?” O que me incomodou mesmo foi o desfecho, que, é claro, não vou contar, mas que posso dizer: foi decepcionante. A linguagem do autor, por outro lado, faz cócegas no cérebro, especialmente nas comparações poéticas que até me lembraram um pouco José de Alencar.

Passemos agora à segunda narrativa, minha preferida, que é o romance “A Experiência”. A narrativa é dividida em 3 partes: Ele; Ela; Todos Eles. A primeira parte, “Ele”, traz capítulos que narram os “dias” de Januário na prisão. Cada capítulo designa um “dia”, com exceção do primeiro, que narra “a entrada” de Januário no presídio. O autor começa por contar as emoções provocadas por aquele ambiente que, anos antes, fora um asilo de crianças órfãs, onde o próprio Januário passara a infância. Ele começa a recordar os principais acontecimentos daquele bonito período de sua vida, contados em retalhos para seus companheiros de cela: Palhetas, Malafaia e António Joaquim, a quem todos chamam “O Sábio”. O texto é geralmente escrito em duas camadas, de modo que o autor alterna o foco da narrativa insistentemente, deixando o leitor, muitas vezes, impaciente pela continuação do enredo principal. O autor também reveza a função de narrar. Ora o próprio Januário está a contar os fatos, ora temos um narrador em 3ª pessoa a complementar a narração. Esses recursos não se dão através de digressões, uma vez que o autor não se detém por largo tempo nas interrupções que faz. É mais uma questão de ritmo, tornando o texto quase uma prosa poética. Januário conta do tempo que passou no asilo e de seus namoricos com Clarinda, outra órfã. Quando o asilo fecha as portas, por falta de recursos, as crianças ficam desamparadas. Januário é adotado pelo Sr. Carrazedas, um velho tabelião. Clarinda vai para a casa de dona Ludovina, uma viúva que era vizinha do filho do Sr. Carrazedas. Januário conta da condição de criado que tinha no seu novo lar, como dos trabalhos excessivos que lhe eram atribuídos pela senhora Germana, governanta da casa.

Em “Ela”, segunda parte do romance, temos os mesmos moldes e recursos utilizados em “Ele”, inclusive a narrativa em duas camadas. Desta vez, é Clarinda, agora no prostíbulo de dona Fortunata, que vai contar às companheiras “da vida” suas desventuras após o fechamento do asilo. Essas companheiras são: Cesária, Pilu, Natália e Luísa. O relacionamento entre as “moças” não é tão pacífico quanto o de Januário e seus colegas de cela, embora eles também tenham discutido algumas vezes. Os capítulos de “Ela” são designados por “tardes”. Não obstante as discussões, Clarinda conta do tempo que viveu em casa de dona Ludovina e de como se apaixonara por Armando, afilhado da viúva. Percebam como “Ela” e “Ele” se casam perfeitamente, contribuindo para a excelente constituição do romance, que é todo muito bem calculado. Há um momento em que finalmente Januário e Clarinda se encontram depois de padecerem nas casas de seus “benfeitores”, sendo que esse encontro ocorre antes dele ser preso e dela entrar para o prostíbulo. Em “Todos Eles” finalmente se explica a prisão de Januário, além de termos os desdobramentos finais da trama. Os capítulos são designados por “dias” e “tardes” e o processo da construção narrativa em duas camadas persiste, revezando o tão ansiado julgamento de Januário com a história do asilo que virou presídio, o que esclarecerá a razão do título “A Experiência”. O final, assim como em “A Missão”, não me agradou muito, mas por motivos diferentes. Numa das cenas finais, o narrador sugere ou dá a entender algo que revolta o leitor. Em “Todos Eles” fica bastante evidenciada a intenção por detrás do enredo, a crítica social realizada de maneira bastante pertinente, discreta e gritante ao mesmo tempo. E acreditem: tudo o que contei é apenas a superfície, a parte mais palpável do romance, pois o mesmo compreende matéria suficiente para uma tese de doutorado rsrsrs. Só a forma textual daria um excelente estudo.

Enfim, temos “O Senhor dos Navegantes”, que não é menos pretensioso que seus antecessores. Um embate do homem com o próprio Deus é a proposta do conto. Nele, o narrador conta de quando subiu a colina para chegar à capela do Senhor dos Navegantes, onde os pescadores devotos agradeciam os livramentos divinos em alto mar. Lá, ele encontra um estranho que, pela conversa, sugere ser Deus. O estranho começa a reflexionar uma porção de assuntos, propondo a ideia de que o ser humano precisa continuar/aperfeiçoar a obra começada por Deus. Embora aparentemente herético, o conto não visa questionar a existência divina; antes, busca criticar a forma como as pessoas entendem Deus, achando que podem agradá-lo com oferendas, votos e esforços que poderiam ser melhor empregados na luta pelo bem comum.

No mais, tenho certeza de que deixei passar muita coisa dessa obra tão densa e tão rica. Deve-se levar em conta que foi uma das últimas publicações de seu autor que nela soube desenvolver com muito acerto toda sua maturidade literária. Não se trata de um livro para qualquer ocasião, muito menos para qualquer leitor. É indubitavelmente uma leitura transformadora e prova cabal de que a Literatura é capaz de proporcionar experiências inacreditáveis.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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