domingo, 21 de abril de 2024

Tragédia no Mar (The Poseidon Adventure), de Paul Gallico - RESENHA #208

Sou de uma geração da qual o navio Poseidon fazia parte do imaginário popular. Lembro de ter assistido pelo menos três versões cinematográficas da história do transatlântico que ficou à deriva no oceano, virado de ponta-cabeça. Mas somente depois de adulto descobri que todas aquelas histórias provinham de um romance norte-americano do escritor Paul Gallico, obra que, aliás, tendo sido um sucesso na época de sua publicação (1969), está hoje bastante esquecida. Depois de finalmente lê-la, consigo entender o porquê.

Iniciei a leitura de Tragédia no Mar (minha tradução, de Primavera das Neves, optou por este título) bastante empolgado com o estilo da narrativa, mas principalmente com a galeria de personagens criada pelo autor. Ali estavam, logo nos primeiros capítulos, todos os ingredientes que constituem os grandes livros de aventura: uma premissa fantástica, personagens misteriosos que escondem segredos, um casalzinho que se forma em meio ao caos, figuras simpáticas e de alívio cômico, além de muitos outros elementos que despertam a curiosidade e o interesse do leitor.

Sobre a premissa, em linhas gerais, o livro conta a história de um luxuoso transatlântico que, durante um cruzeiro que deveria compreender o natal e o réveillon, é atingido por um maremoto que o faz virar de ponta-cabeça. Os vários espaços vazios em compartimentos internos, no entanto, fazem com que o navio permaneça flutuando com o fundo do casco acima da superfície.

Uma tragédia de tal proporção, como se supõe, faz muitas vítimas instantaneamente. Quanto aos sobreviventes, além de traumatizados, estão todos muito confusos e indecisos quanto ao que fazer dali por diante. Dentre eles está o reverendo Scott, um dos primeiros a manifestar espírito de liderança, com o qual influenciará o pequeno grupo que vamos acompanhar durante toda a narrativa.

Julgo pertinente apresentar essa galeria de personagens, porque de fato ela constitui um dos maiores acertos do romance. O reverendo Frank Scott, por si só, já é um tipo muito misterioso. Proveniente de família rica e com um passado laureado de méritos no mundo dos esportes, ele abandona tudo para seguir carreira religiosa. Os demais passageiros não compreendem ao certo as razões que o levaram a fazer o cruzeiro do Poseidon, mas acreditam que o fato esteja ligado ao boato de que o reverendo havia sido desligado da igreja à qual pertencia.

Temos em seguida os Shelby, que são aparentemente uma família perfeita e exemplar. Richard e Jane parecem ser um casal modelo, pais de dois filhos muito promissores: a bela Susan e o pequeno Robin, espécie de menino-prodígio com inteligência acima da média. Ao longo do livro, porém, vamos descobrindo uma esposa frustrada e insatisfeita com um marido que ela julgava covarde e pusilânime de caráter.

O casal Rogo, por sua vez, não é menos interessante. Mike Rogo é um detetive da polícia americana que está de férias com a esposa Linda, mas todos desconfiam que ele esteja realizando alguma investigação secreta. Linda Rogo é uma mulher desprezível, que está sempre xingando todo mundo, inclusive o próprio marido, a quem culpa por ter abandonado a carreira de atriz.

Temos também o casal Rosen, que compreende o núcleo cômico de que já falei. Manny e Belle Rosen são comerciantes aposentados. Belle, em sua juventude, fora campeã de natação, mas, depois do casamento, dedicada à vida doméstica, foi ganhando cada vez mais peso. Além de serem naturalmente engraçados, os Rosen ganham facilmente a simpatia do leitor, mas justamente por isso também rendem cenas em que ficamos com o coração na mão.

James Martin é um empresário americano de alfaiataria masculina. Casado, ele está curtindo férias com sua amante. Após a tragédia, Martin entra numa crise de consciência, atormentado pela ideia de que não merecia ter sobrevivido. Mary Kinsale é uma incógnita. Trata-se de uma solteirona de poucas palavras, de caráter religioso e de muita discrição.

Tony Bates é um alcóolatra inglês, que está sempre bebendo na companhia de Pamela, que ele conheceu no navio e que, assim como ele, é capaz de beber descontroladamente sem se embriagar. Junto a eles está o americano solteirão Hubie Muller, um homem descrente no amor, mas que acabará apaixonado por Nonnie, uma dançarina que também sobrevive à tragédia. Fechando o grupo, temos o turco Kemal, membro da tripulação, que decide seguir o reverendo Scott em seu plano de salvamento.

A fórmula praticada por Gallico é fazer esse grupo avançar sempre acima pelos deques invertidos do Poseidon. Cada deque oferece um novo desafio que precisará ser vencido, e essa fórmula vai se repetindo por quase todo o livro, interrompida ocasionalmente por outras circunstâncias. Essa repetição às vezes torna-se um pouco cansativa, mas este não é nem de longe o problema mais grave do livro.

Na segunda metade da obra, infelizmente, o autor parece perder a mão no desenvolvimento da narrativa. Talvez na tentativa de surpreender o leitor com cenas chocantes, algumas situações saem por demais exageradas e até incoerentes. Acredito que o livro desanda de fato a partir de uma cena de estupro no capítulo XIII. Além do horror da cena, o mais difícil de digerir é o desenrolar estranhamente inusitado do episódio, onde os papéis se invertem e temos a vítima consolando o agressor.

Como se não bastasse essa situação inconcebível e repugnante, o autor consegue ir além ao criar uma cena de suicídio que me pareceu bastante incoerente. Dada a importância do personagem que se suicida e levando-se em conta a maneira súbita como tudo ocorre, a cena beira o ridículo, de tão improvável. A narrativa, a partir daí, fica insustentável, tornando difícil e arrastada a leitura dos capítulos finais.

O último capítulo, finalmente, ainda traz a cereja do bolo: a constatação de que todo o sofrimento vivido pelos personagens poderia ter sido diminuído se outras escolhas tivessem sido feitas. E se acham que essa novela não pode ficar pior, o livro termina com a vítima de estupro desejando ficar grávida do seu agressor. Sim, você não leu errado.

Esses momentos desagradáveis da segunda metade de Tragédia no Mar fizeram-me querer lançar o livro pela janela, não nego; mas não posso negar o grau de envolvimento que a narrativa alcança em mais de dois terços da obra. Foram realmente as escolhas questionáveis do autor que prejudicaram a constituição do livro, como também sua sobrevivência, já que o mesmo não envelheceu bem. É lamentável que tenha sido assim, pois Tragédia no Mar perdeu a grande chance de se tornar um clássico.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quinta-feira, 28 de março de 2024

O Matricida, de Alfredo Bastos - RESENHA #207

Desde que li Fantasias, fiquei bastante interessado na obra do paraense Alfredo Bastos. Seus contos, sutis e elegantes, causaram-me uma boa impressão. Além dessa obra, porém, a única publicação dele a que tive acesso foi este romance O Matricida, publicado em folhetins da Gazeta da Tarde entre 8 de novembro de 1880 e 14 de março de 1881. Saiu em formato de livro somente em 2022, pela Editora Oitocentista.

Aqui, devo confessar, a impressão já não foi tão positiva. O livro não chega a ser ruim, mas o enredo, o ritmo e principalmente os personagens não caíram no meu gosto. O Matricida se aproxima mais do folhetim francês, e dificilmente percebemos nele marcas dos nossos costumes. Essa capa de estrangeirismo possivelmente foi uma escolha proposital, a fim de atender ao gosto da época.

O livro é praticamente sobre a perversão e vingança de uma mulher. Alice é uma jovem simples que vive unicamente na companhia de sua mãe. Seduzida por Antão, acaba fugindo com ele, acreditando numa promessa de casamento. Ao perceber que fora enganada e abandonada, decide voltar para sua antiga casa, mas logo descobre que sua velha mãe morrera de apoplexia.

Desolada e com a honra perdida, Alice decide assumir uma nova identidade. Aproveitando-se de seus conhecimentos musicais, torna-se Julieta Alloni, professora de piano; mas, quando a farsa se descobre, decide partir para a Europa, onde descobre que está grávida de Antão.

Após dar à luz um menino, faz acordo com uma criada, recomendando-lhe que entregue a criança a uma família de agricultores. Pouco depois, Alice é descoberta por um empresário teatral, que promete torná-la uma cantora famosa. Daí, ela decide mudar de identidade mais uma vez, passando a ser Elisa Alcoy, uma cantora cubana que, em poucos anos, torna-se uma sensação mundial.

Após essa mudança de vida, Elisa procura Gastão, seu filho, passando-se por sua tia. Por conta de sua agenda com muitas viagens, a cantora matricula o “sobrinho” num colégio interno, partindo logo em seguida para sua turnê pelo Rio de Janeiro, onde reencontra Antão, que não a reconhece.

O antigo sedutor tenta se reaproximar de Alice/Elisa, ignorando completamente sua verdadeira identidade. A partir daí, a cantora começa a alimentar seus desejos de vingança, o que só será possível anos mais tarde, quando o próprio Gastão, já homem feito, poderá auxiliá-la.

Como visto, a trama realmente apresenta um formato bem folhetinesco, mas a galeria de personagens chega a ser tão desprezível, que o romance me parecia intragável em alguns momentos. Antão é um sedutor miserável e egoísta. Alice deixa-se corromper pela fatalidade e torna-se uma mulher fria, vingativa e vaidosa. Finalmente, Gastão desenvolve um péssimo caráter, sendo capaz de cometer os atos mais infames.

Há um núcleo que prometia melhorar a situação do livro: o do mordomo norte-americano James Burtley. Antão o contrata para administração do seu palacete, ignorando que Burtley possui família. A sogra e a filha vivem numa casa alugada pelo mordomo, que as visita sempre que possível. Mary, a filha de Burtley, acaba tornando-se interesse amoroso de Gastão. Infelizmente não aprovei o desenvolvimento e desdobramentos feitos pelo autor para este núcleo.

O Matricida é pois destes livros onde a maldade está sempre em evidência, podendo por isso desagradar leitores como eu. Acho que tal fator acaba sendo mais prejudicial numa obra de entretenimento, que não busca investigar ou refletir as mazelas descritas. Repito que não é um livro de todo ruim, mas certamente está muito longe de ser agradável.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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OBS.: Adquira um exemplar de O Matricida diretamente com a editora, pelo Instagram (@editoraoitocentista) ou por e-mail (editoraoitocentista@gmail.com). 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Angélica, de Maria José Dupré - RESENHA #206

Penúltimo dos romances de Maria José Dupré, Angélica (1955) é mais uma narrativa excelente da autora de Éramos Seis. Fiquei bastante impressionado com Vila Soledade, lido em 2021, e desde então aguardava ansiosamente pelos livros posteriores. Angélica não supera o último romance lido, mas entrega enredo envolvente, ritmo instigante e um drama familiar que flerta com o suspense psicológico.

O livro é sobre um casal de professores, Constança e Norberto, que encontra dificuldades para ter um filho. Constança, que já não é muito jovem, após uma década de tentativas, finalmente fica grávida, mas sua filhinha Liliana acaba falecendo pouco depois de completar o primeiro ano.

Angélica é a filha da cozinheira de uma família rica, cujos patrões também contratam Constança para dar aulas particulares a um garoto. Como Constança precisava de alguém para lhe auxiliar no serviço doméstico, acaba convidando Angélica, pois esta não possuía trabalho fixo. A menina, de apenas quatorze anos, chama logo atenção por sua beleza e boas maneiras.

Angélica, a mãe e o padrasto são europeus fugidos da guerra. Constança, penalizada com os relatos da adolescente, cria uma afeição imediata pela garota. O mesmo se dá com Norberto e, em pouco tempo, Angélica ganha a confiança do casal. Acaba mesmo contando sobre a agressividade do padrasto e de suas más intenções em relação a ela. Uma série de circunstâncias do passado levam a crer que a cozinheira não é a verdadeira mãe da garota. Diante disso, os professores decidem procurar o Juizado de Menores.

Como os depoimentos da “mãe” de Angélica não têm consistência e a mesma não possui nenhum documento comprobatório, o juiz concede a Norberto a tutoria provisória da jovem. O casal de professores fica bastante entusiasmado com a ideia de uma nova filha, e pretende, assim que possível, entrar com um pedido de adoção. Angélica é liberada imediatamente de suas funções domésticas; seu único dever agora é estudar, para dar orgulho a seus futuros pais.

A partir desse ponto do enredo, porém, a autora nos dá ocasionalmente possíveis pistas sobre a verdadeira natureza de Angélica, que é um tipo bastante controverso. Constança é a primeira a notar o quão distintas podem ser as reações e atitudes da garota em diferentes momentos. A notável preferência dela por Norberto, que é sempre mais condescendente, também não passa despercebida à professora que, com o passar do tempo, mantém-se cada vez mais alerta em relação à adolescente.

Esse momento dúbio da narrativa é o mais impressionante do livro. A autora, com bastante sutileza, nunca deixa totalmente claro se Angélica esconde segredos licenciosos ou se Constança, influenciada pelo ciúme, fantasia suspeitas exageradas e descabidas. A professora, de fato, com sua saúde (física e mental) um tanto abalada, não parece uma narradora confiável. E como o que temos é o seu ponto de vista, desconfiamos de suas impressões, tal como ocorre com Bentinho em Dom Casmurro.

Mesmo tendo uma construção interessantíssima, a escrita de Angélica deixa a desejar em várias passagens, sugerindo um texto mais apressado, que assim mesmo está longe de ser ruim. Também senti falta de uma participação maior dos personagens secundários. A trama está sempre muito centrada no triângulo Constança-Norberto-Angélica.

Para quem já conhece o trabalho de Maria José Dupré, Angélica poderá ser uma ótima surpresa, por revelar outras facetas do talento da escritora. O livro também pode funcionar como uma excelente porta de entrada para quem nunca leu nada da autora de Éramos Seis. Angélica é, dessa forma, um livro para grandes públicos. Juntamente com Vila Soledade, merece urgentemente ganhar uma nova edição.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 3 de fevereiro de 2024

Cenas Populares, de Juvenal Galeno - RESENHA #205

A origem do conto cearense pode dividir opiniões, seja pela velha questão da diferença entre “conto” e “novela”, como também pelas circunstâncias de publicação. Há quem considere José de Alencar um precursor, por narrativas curtas como Cinco Minutos (1856) e A Viuvinha (1860). Em seguida, temos Franklin Távora, que publicou as histórias que formam A Trindade Maldita em 1862. Contos Brasileiros (1868), de Araripe Júnior, também entra na disputa. Mas é Juvenal Galeno, com suas Cenas Populares (1871), quem mais merece o título de precursor.

José de Alencar, o grande romancista, pouco se dedicou à produção de narrativas curtas. Acredito que apenas dois textos seus atendem aos critérios do que entendemos hoje por “conto”: o panfleto satírico “A corte do leão” (1867) e “Lembra-te de mim” (1872), que saiu no livro Noturnos, de Luís Guimarães Júnior. Cinco Minutos e A Viuvinha, na condição de obras mais extensas, não podem ser consideradas contos.

A Trindade Maldita, de Franklin Távora, por sua vez, obedece ao formato de “narrativa-moldura”, à maneira de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, sua principal influência. Esse tipo de narrativa está mais para uma novela, embora, de fato, as histórias contidas na “moldura” possam ser entendidas isoladamente. Quanto aos Contos Brasileiros, de Araripe Júnior, a situação chega a ser engraçada, uma vez que o título é um tanto enganoso, sugerindo um compilado de histórias curtas, mas entregando na verdade uma novela, “Tabira”, seguida de um único conto: “Jaguaraçu e Saí”.

É Juvenal Galeno quem, portanto, apresenta a primeira coletânea de contos no formato que se utiliza até hoje, reunindo oito narrativas curtas no volume Cenas Populares. Se lembrarmos que as demais obras acima mencionadas foram publicadas por seus autores fora do Ceará, maior mérito atribuiremos a Galeno enquanto pioneiro do conto cearense.

Como ocorre à maioria dessas obras iniciadoras de um segmento literário, Cenas Populares é um trabalho de pouca excelência. Aqui o gênero “conto” está em processo de formação, e seu autor experimenta várias fórmulas na tentativa de encontrar o modelo mais azado aos seus fins estilísticos.

“Os pescadores” nos introduz a essa experiência tão inovadora para o poeta cearense. É possível que os contos de Galeno estejam dispostos em ordem cronológica de escrita, pois esta primeira história é notadamente marcada pela poesia, gênero que imortalizou o autor das Lendas e Canções Populares. “Os pescadores” não possui um enredo convencional; nele temos personagens e costumes sendo descritos, de tal forma a criar um quadro contemplativo para apreciação do leitor, como um longo poema em prosa.

“Dia de feira” segue por caminho semelhante. Deixamos o litoral cearense e seguimos para a Serra da Aratanha, onde o autor nos leva a contemplar um “dia de feira” no centro de Pacatuba. O autor experimenta, contudo, um modelo diferente, dividindo o texto em três partes principais: a primeira segue o mesmo estilo poético da narrativa anterior; a segunda se concentra num casal de agricultores, apresentando uma narrativa isolada, com começo, meio e fim, e que, por si só, renderia um conto; a terceira traz um relato histórico sobre a Serra da Aratanha e da então vila de Pacatuba.

É, contudo, na terceira narrativa, “Folhas secas”, que Juvenal Galeno acerta com o estereótipo do conto cearense. Temos aí, por assim dizer, o conto definitivo, com todos os seus componentes essenciais. É o trabalho mais excelente do conjunto, digno mesmo de figurar, com louvor, em qualquer antologia. Nele o vaqueiro José Bernardo, durante um serão noturno, relata os principais acontecimentos em torno de seu casamento com dona Francisquinha. “Folhas secas”, além de um enredo consistente, possui ritmo e ambientação primorosos, sendo ainda bem-humorado do início ao fim.

“Noite de núpcias” tenta reproduzir o esquema de “Folhas secas”, desta vez nos trazendo uma narrativa triste e lacrimejante. Não podemos esquecer que Cenas Populares foi publicado quando o Romantismo ainda estava vivendo seu auge no Brasil. O resultado neste quarto conto não foi tão satisfatório quanto no terceiro. O tema da garota iludida, abandonada e prostituída também já estava um tanto desgastado para a época, mas, ainda assim, o texto mantém-se bem-acabado e interessante.

“Senhor das caças” é outro ponto alto da coletânea. Juvenal Galeno, que sempre bebeu na fonte do folclore popular para fazer literatura, fez bom uso dessa matéria neste conto que é quase tão bom quanto “Folhas secas”. Durante uma “farinhada”, vários trabalhadores (de ambos os sexos) compartilham de uma prosa agradável, na qual alguns deles exercem a função de contadores de histórias fantásticas que divertem o grupo. “Senhor das caças” é praticamente uma “mini-narrativa-moldura”, contemplando histórias muito curtas. Embora a fantasia e o colorido dos causos relatados engrandeçam o conto, a ambientação construída na “moldura” é que o torna uma pequena joia literária.

Difícil de entender é como o autor, após tantos avanços, acaba retrocedendo na qualidade literária alcançada até então. “Clara” é o puro suco do romantismo exagerado e ultrapassado, sendo previsível e de pouca relevância. “Amor-do-Céu”, embora tocando num tema ainda recente e delicado para a época (o recrutamento de pais de família durante a Guerra do Paraguai), tem um ritmo arrastado e igualmente previsível. “O serão”, finalmente, embora não seja estupendo, encerra a coletânea de modo simpático.

Cenas Populares dificilmente agradará leitores em geral, por se tratar de um livro de conteúdo datado, onde um poeta experimenta pela primeira vez a prosa de ficção. Todavia, sendo a primeira coletânea de contos publicada por autor cearense, é leitura indispensável aos estudiosos da nossa literatura.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

TOP 5 - MELHORES LEITURAS DE 2023!!!

Apesar de ter lido consideravelmente menos em 2023, não poderia deixar de destacar as leituras mais marcantes do ano passado. Infelizmente tive muitas decepções literárias ao longo de todo o ano. Orgulho e Preconceito deve ter sido a maior delas. O aclamado clássico de Jane Austen não me conquistou da forma esperada, e a impressão final foi a de um livro datado e superestimado. Um volume de contos de Rachel de Queiroz (uma de minhas prosadoras favoritas) foi possivelmente o livro que menos gostei da autora até agora. O Almirante, de Domingos Olímpio, um dos livros mais ansiados por mim, com seus altos e baixos acabou sendo um romance bastante mediano. E, finalmente, os livros de que não gostei, como Laranja Mecânica e Torto Arado, fizeram de 2023 um ano difícil para este leitor. Mas passemos finalmente aos alentos do ano, ou seja, àqueles livros que nos fazem lembrar por que somos leitores apaixonados.

 

# 5º lugar JANE EYRE, de Charlotte Brontë (3 estrelas)


Lamento que este livro tão importante para a literatura universal apareça aqui simplesmente como uma menção honrosa. Eu realmente esperava mais de Jane Eyre, e até previa gostar mais dele que d’O Morro dos Ventos Uivantes, o que não aconteceu. Tenho criado uma antipatia insuportável pelos “mocinhos” ingleses. Valancourt, Heathcliff, Mr. Darcy... Detesto todos eles. Quanto ao senhor Rochester, meus sentimentos foram um tanto contraditórios. Eu realmente penso que Jane merecia um homem melhor; mas, quando lembro de seu outro pretendente, aquele primo irritante que queria obrigá-la a ser missionária na Índia, acho Rochester formidável. No mais, o livro tem diversas passagens interessantíssimas, algumas até que me levaram às lágrimas. Eu simplesmente não conseguiria pensar nas leituras do ano passado sem lembrar de Jane Eyre.


# 4º lugar MAURÍCIO, de Bernardo Guimarães (4 estrelas)


Todos sabem que eu amo uma boa literatura de entretenimento, gênero este do qual Bernardo Guimarães é simplesmente um mestre. Suas histórias, para mim, nunca perdem o fascínio e o sabor característico das narrativas orais. Maurício, em análise literária, talvez seja seu romance menos polido, o que em nada compromete os atrativos de um enredo envolvente e que mantém o leitor cativo do início ao fim. Os capítulos que escreveu para O Bandido do Rio das Mortes (continuação de Maurício) são uma amostra comprobatória de uma grandiosidade que infelizmente não pôde ser concluída, e que só por isso não integrou esta seleção.

 

# 3º lugar O CAPOTE e outras histórias, de Nikolai Gógol (4 estrelas)


As narrativas curtas de Nikolai Gógol surgiram em meu caminho como uma luz no fim do túnel e, curiosamente, abriram uma sequência de ótimas leituras. “O capote” e “O nariz” são textos tão inovadores para a época em que foram publicados, que não há como não ficar surpreso com a genialidade de Gógol. Embora o “fantástico” não seja o gênero da minha preferência, o estilo criativo e bem-humorado do autor russo me conquistou definitivamente. Maior surpresa do ano, sem dúvida!


# 2º lugar A PRINCESINHA, de Frances Hodgson Burnett (5 estrelas)


Sim, eu ainda avalio livros com 5 estrelas rs! E, para comoção geral, ano passado isto aconteceu duas vezes seguidas! Eu mesmo ainda nem acredito rs. A Princesinha é o segundo livro que leio de Frances Burnett. O Jardim Secreto, também avaliado com 5 estrelas, foi a melhor leitura de 2020 e, desde então, os livros de Frances estiveram no meu radar, embora não tenha muitos títulos dela. A Princesinha me fez questionar se gostei mais dela que do Jardim, e até agora não cheguei a uma conclusão. Acho ambos os livros incríveis, belíssimos e transformadores. Eu, particularmente, acho uma tarefa dificílima escrever um livro infantil que agrade (de verdade!) também ao adulto; e Frances faz isso com maestria. Sua escrita exerce um fascínio instantâneo sobre o leitor. Pessoas que abandonam seus livros precisam ser estudadas.

 

# 1º lugar A VIÚVA SIMÕES, de Júlia Lopes de Almeida (5 estrelas)


Que saudade que senti de minha querida D. Júlia! Em 2022, por conta do projeto pessoal com a “Coleção Saraiva”, não pude ler um novo título da autora. Mas ano passado nos reencontramos e selamos de vez nosso caso de amor. Júlia Lopes de Almeida tornou-se oficialmente, até o presente momento rs, minha escritora preferida. Quando iniciei A Viúva Simões, embora estivesse gostando bastante, não imaginava a excelência que o livro alcançaria até o capítulo final. É emocionante o sentimento de grandeza que uma obra de arte pode proporcionar: quando a contemplação se apresenta como um privilégio. É assim que me sinto quando leio D. Júlia: um privilegiado.


Daniel Coutinho

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sábado, 30 de dezembro de 2023

A Princesinha (A Little Princess), de Frances Hodgson Burnett - RESENHA #204

A feliz experiência que tive com O Jardim Secreto, da inglesa Frances Hodgson Burnett, levou-me a querer conhecer outros títulos da autora. Seguindo o caminho mais óbvio, escolhi A Princesinha (1905) como próxima leitura. E, mais uma vez, Frances me mostrou o que é literatura infantil de alta qualidade.

A primeira versão deste clássico saiu com o título Sara Crewe (1888) em formato de conto. Os editores de Frances, no entanto, sugeriram um desenvolvimento melhor para a irresistível história da orfãzinha, o que resultou no livro que temos hoje, publicado mais de quinze anos depois em formato de romance.

A Princesinha, tal como O Jardim Secreto, é uma narrativa que explora valores como bondade, generosidade e esperança. Cada capítulo é uma espécie de lição que nos leva a refletir na riqueza que são os bons sentimentos. Sara é uma criança tão perfeita, que chega a ser difícil admitir sua existência, mas, ao longo do livro, acabamos conhecendo seu lado frágil em momentos de vulnerabilidade.

Sara é uma menina rica, filha do capitão Crewe, um importante negociante indiano. Órfã de mãe, aquela filha única sempre teve de tudo, sendo mimada pelo pai nos mínimos detalhes; mas, por conta dos negócios, o capitão decide matriculá-la num renomado colégio interno em Londres. A senhorita Minchin, diretora do internato, recebe Sara com bastante cordialidade, oferecendo-lhe todos os confortos disponíveis em sua escola, mas sua conduta é sempre guiada pela situação financeira avantajada daquele pai tão generoso.

A princípio, tudo parece correr bem para Sara que, com seu jeito doce e meigo, conquista muitas amizades, mas também inveja e antipatia de umas poucas garotas. Um funesto acontecimento, porém, muda a posição social de Sara do dia para a noite, transformando-a de princesinha em pobre serviçal. A repentina mudança gera um grande desafio para ela, que precisará adaptar-se a um novo cenário nada convidativo, mas que se tornará suportável graças ao poder de sua imaginação.

Lendo A Princesinha, tive o mesmo pensamento de quando li O Jardim Secreto: “O mundo inteiro precisa ler e praticar as lições deste livro”. As mensagens contidas nas obras de Frances não se aplicam somente às crianças. A verdade é que nós, adultos, carecemos muito mais da aplicação delas em nossas vidas.

É muito interessante como as páginas d’A Princesinha conversam com os nossos bons sentimentos. É como se o que há de melhor em nós reagisse aos episódios do livro, exclamando em nosso interior: “É isso mesmo! É assim que se faz!”, e desse modo confirmando que também somos pessoas boas e capazes de fazer o bem.

Livros como O Jardim Secreto e A Princesinha são renovadores de esperança. Eu me refiro à esperança em nós mesmos. A leitura deles nos faz pensar que, ao invés de olharmos para a humanidade como juízes, devemos fazer a nossa parte, e isso, de certa forma, bastará.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 9 de dezembro de 2023

A Viúva Simões, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #203

D. Júlia é um talento inegável. Dentre todas as escritoras brasileiras que já li, sua obra tem ressaltado com um viço e uma potência impressionantes, e isto vem se confirmando com mais força a cada nova leitura. A Viúva Simões (1895) é minha sexta experiência com a autora e, como já esperado, o livro caiu na minha graça.

É simplesmente maravilhoso quando lemos um autor pelo qual nos apaixonamos, principalmente quando, a cada novo livro, essa paixão só aumenta. Os livros de Júlia Lopes de Almeida conversam comigo de uma forma encantadora, pois o estilo deles vai diretamente ao encontro do meu gosto pessoal. A escolha dos temas, a construção dos enredos, a caracterização e atuação dos personagens, a condução da narrativa, o estilo de escrita... Tudo isso me agrada. Talvez o uso de alguns estrangeirismos seja o único ponto incômodo, mas nada que tire o brilho desses livros tão preciosos que a autora nos deixou.

Em A Viúva Simões, acompanhamos o drama de Ernestina que, tendo enviuvado muito jovem, renova suas antigas inclinações por Luciano, seu primeiro amor. O antigo namorado, porém, embora atraído pela viúva, é um homem mundano, avesso a compromissos. Depois de uma longa ausência, tendo vivido muitos anos na Europa, Luciano retorna ainda solteiro e passa a frequentar a casa de Ernestina, com quem flerta descaradamente.

Ernestina, contudo, possui uma filha já crescida, a jovem Sara, que em tudo lembra o falecido comendador Simões. Luciano antipatiza a garota à primeira vista, e não se esforça em nada por esconder da mãe sua opinião em relação à filha, mesmo o que diz respeito à aparência dela. Ernestina esforça-se ao máximo por apaziguar a situação, especialmente depois que Sara começa a perceber um movimento de mudanças acontecendo em sua casa.

Fiel à memória do pai, Sara encara pessimamente as atitudes da mãe, que interrompe o luto em menos de um ano. Mas essa alteração de cores no visual da família faz ressaltar a beleza de Sara, que já não é mais tão desinteressante aos olhos de Luciano. Uma aproximação inevitável entre os dois desencadeia uma série de acontecimentos dramáticos e até trágicos.

Uma qualidade das mais excelentes em D. Júlia é o manejo dos personagens secundários, sempre valorizados em seus romances. A caracterização que ela nos dá faz com que os enxerguemos tão nitidamente quanto as figuras centrais, e o movimento deles em cena confere um toque bastante realista aos episódios da trama. Os empregados de Ernestina não são meros figurantes. Ainda que a autora não se atenha a todos por igual, conhecemos suas existências, suas rotinas e suas aspirações.

Outra característica já percebida em leituras anteriores, e que considero muito positiva, é esse “efeito crescente” nos seus romances. À medida que avançamos no texto, a trama parece ganhar mais consistência, como um caldo que vai engrossando até atingir o ponto ideal. Quando finalmente chegamos ao desfecho, temos a imagem final de uma obra belamente acabada, onde, de modo geral, tudo está no seu devido lugar e nada mais precisa ser dito.

A Viúva Simões me deixou ainda mais apaixonado por sua autora. D. Júlia é hoje para mim um porto seguro, um lugar aconchegante onde sempre serei bem recebido. É um alento saber que ainda tenho vários livros dela para desfrutar. São essas alegrias que nos mantêm sendo leitores. E como isso é bom!

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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