segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Amor de Salvação, de Camilo Castelo Branco - RESENHA #33

Não imaginava que Amor de Salvação me daria tanto trabalho quanto deu. Camilo Castelo Branco foi um gênio da língua portuguesa, sobre a qual tinha um domínio inacreditável. Dele, só tinha lido Amor de Perdição e A Brasileira de Prazins. O primeiro, sua obra mais conhecida, escrita quase como um passatempo quando esteve na prisão, foi uma boa iniciação de sua obra para mim; o outro, porém, me apresentou o verdadeiro Camilo, com toda sua genialidade e poderoso vernáculo. Embora o tenha lido há muito tempo, lembro muito bem do quanto fiquei envolvido pela história da desditosa Marta de Prazins. As dificuldades da leitura, lembro bem, não tiravam o interesse do livro. Taí um livro que quero muito reler! Essas duas leituras haviam criado uma imagem positiva de Camilo em minha concepção. Ansiava pelo Amor de Salvação, supondo que me seria mais agradável ainda que o outro, por trazer um título que sugere uma réplica feliz à trágica novela de Simão e Teresa.

Ledo engano de minha parte! Criar expectativas pode ser prejudicial às experiências de leitura, mas, neste caso, creio que o livro me seria inevitavelmente o que foi: só bom, nada mais. A princípio, confesso que me senti desafeiçoado àquela linguagem altamente rebuscada de Camilo, aos diálogos complexamente elaborados, ao linguajar típico da região minhota, etc. Felizmente, minha edição trazia rodapés em quase todas as páginas, o que me foi bastante útil. Conta-se que, no século XIX, os brasileiros buscavam os livros de Camilo, que àquela época já era o mestre da novela passional, quando desejavam enriquecer seu vocabulário. Em observação preliminar à obra, ele já adverte: “O leitor folheia duzentas páginas deste livro, e o amor de felicidade e bom exemplo não se lhe depara ou vagamente lhe preluz. [...] Volume que descrevesse um amor de bem-aventuranças terrenas, seria uma fábula”. Nessa perspectiva, este livro é um “Amor de Perdição 2”, assinalando-se que a dose de perdição nele é ainda maior rsrsrs. Mas sem querer confundir os leitores, vou logo avisando que Amor de Perdição e Amor de Salvação não possuem qualquer ligação em relação às tramas, que são independentes.

A proposta de Camilo é apresentar um protagonista que vivencia a perdição através do amor, mas que ao final poderá ser “salvo”. Não pensem que isto é um spoiler. Em se tratando de Amor de Salvação, nem me preocupo em dar spoilers, uma vez que o próprio autor faz isso. E isto é sério! Eis o primeiro detalhe que me incomodou (e bastante mesmo!) nesta leitura: o autor antecipa revelações. Logo nos capítulos iniciais, o leitor já tem uma ideia geral do que será contado com pormenores nos capítulos subsequentes. O que ocorre é que o enredo de Amor de Salvação, por não ser lá muito interessante, acaba se tornando mais insosso em decorrência do leitor já saber muito a respeito. Que ousadia de minha parte chamar o livro de Camilo de insosso rsrsrs! Mas estou apenas sendo sincero. Não vou desgostar de Camilo por causa desse livro! É praticamente impossível amar todos os livros de um autor. Até Alencar, de quem admiro quase todas as obras literárias, me aborreceu com sua Diva e, de certo modo, também n’O Sertanejo. Assim, continuo sendo admirador confesso de Camilo e, com certeza, lerei ainda muitos outros livros seus!

Amor de Salvação contém dois narradores: o narrador-autor, que se mantém no anonimato; e Afonso de Teive, o protagonista. Os quatro primeiros capítulos funcionam como um prólogo, onde se dá o panorama geral do que decorrerá em sequência, conforme já observei. O narrador-autor, perdendo-se pela região do Minho, acaba deparando-se com um homem que se dá a conhecer. Trata-se de Afonso, não reconhecido de imediato, pelas visíveis mudanças sofridas. Aquele estudante boêmio que publicava textos espirituosos tornara-se num senhor de vida tranquila, ao lado da mulher e de oito filhos (sem contar um nono à espera). Afonso diz ter encontrado a felicidade na vida simples, sob a luz da religião; mas a verdade é que não foi muito fácil para ele chegar aonde chegou. O narrador-autor, que é um romancista de fôlego (sugerindo ser o próprio Camilo?), acaba cedendo ao desejo de Afonso de transportar sua história de vida para um romance, que deveria se chamar “Amor de Salvação”. Os dois amigos encaminham-se para uma estalagem, onde passam a noite; fazendo-se aí ocasião suficientemente propícia para que Afonso realize todo o seu relato.

Afonso conta sobre os planos de sua mãe Eulália de casá-lo com a filha de uma grande amiga. Esta donzela é Teodora, que achando-se órfã, é encerrada num convento por um tio que lhe serve de tutor. Mesmo sabendo do acordo selado entre as duas mães sobre o casamento de seus filhos, o tio de Teodora opõe-se ao consórcio, alegando a pouca idade dos jovens. O convento constitui verdadeiro tormento para Teodora, que é seduzida pelos prazeres mundanos. Consciente de que esperaria muito tempo até poder casar-se com Afonso, ela encontra uma maneira de antecipar a saída de seu cárcere: casando-se com seu primo Eleutério, o filho de seu tio-tutor. Eleutério, longe de ter as qualidades de Afonso, é um ignorante que ganha a vida num negócio com animais. Nem preciso dizer que Teodora não o amava; casou-se mesmo com a intenção de libertar-se. A notícia do casamento de Teodora causa grande alvoroço em Afonso e sua família. A mãe insiste em que ele a esqueça, mas embora concentre seus interesses em estudos e viagens, seus esforços são baldados e ele continua a amar Teodora.

Impossível não lembrar as observações da crítica com relação às escolhas irônicas de Camilo aos nomes de suas personagens. Teodora, por exemplo, significa “dádiva divina”, quando é apresentada no livro como mulher fatal. Mafalda, prima de Afonso, tem um nome que remete a “mau fado” ou “destino ruim”, quando no livro é um anjo de bondade. Essa prima Mafalda surge na história quando Afonso passa uma temporada na casa de Fernão de Teive, seu tio. A moça, que é um exemplo de pureza, involuntariamente se encanta do primo, mas sabe que ele tem o coração ocupado por uma mulher casada com quem ainda se corresponde. Teodora, desejosa de novas venturas, tenta Afonso por vários meios, até que ele não possa mais resistir.

Analisando a síntese da narrativa, constata-se que a mesma não é ruim. O que me desgostou, além das revelações antecipadas de que já falei, foi a fluência do texto. Quase sempre previsível, a novela carece daquela vivacidade tão comum aos escritores do Romantismo. Embora seja um romance romântico de fato, o autor experimenta um humor satírico, que é o que, de certo modo, sustenta a obra. O narrador-autor meio que faz-se de comentarista às desventuras de seu amigo. Dei boas gargalhadas com a ironia ferina que perpassa todo o volume. Assim, agradei-me mais dos elementos secundários que da narrativa propriamente dita. Reconheci perfeitamente a genialidade do escritor, mas senti falta do poder de fabulação do romancista.

Amor de Salvação não traz uma narrativa envolvente, empolgante e instigante. É obra que se eleva por sua forma diferenciada de defender a moral e a religião. É um romance romântico atípico, cuja técnica literária aproxima-se à de um ensaio satírico, não nas proporções de uma Madame Pommery, mas ainda distante de um romance romântico convencional.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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