segunda-feira, 4 de julho de 2016

Madame Pommery, de Hilário Tácito - RESENHA #18

Eis um livro que representa muito bem as propostas do Modernismo. Alguns críticos preferem encaixá-lo no Pré-Modernismo, por ter sido publicado em 1919, portanto, antes da semana de 22; mas a verdade é que tanto a forma como o estilo de Madame Pommery mostram o quanto seu autor, Hilário Tácito, estava distanciado do modelo de romance do século XIX.

Confesso que sou meio apático à literatura moderna, especialmente por essa bagunça de gêneros entrelaçados e sobretudo por julgá-la bastante pretensiosa. Não quero generalizar, mas a verdade é que muitos autores modernos, a meu ver, queriam mais chamar atenção do que produzir arte; e a maneira que lhes estava mais à mão era uma busca incessante pelo “diferente”, aspectos que lhes rendessem originalidade, recursos radicais o suficiente para que pudessem figurar como autores modernos e preocupados com o desenvolvimento da literatura nacional.

Nem queria tocar nesse assunto, mas a leitura de Madame Pommery não tinha como não trazê-lo à tona, até porque essa obra se encaixa perfeitamente nisso tudo que citei. O autor de Madame Pommery queria a todo custo um lugar na literatura, e não poupou recursos para conquistá-lo. Foi bastante pretensioso ao querer compor uma obra que exalasse uma novidade estupenda que causasse forte impacto em seus contemporâneos; e, podemos dizer, acabou conseguindo.

José Maria de Toledo Malta (1885-1951) trabalhou com bastante perícia e cálculo na fabricação de seu único romance. É pertinente lembrar que ele foi importante engenheiro civil de seu tempo, participando na construção dos primeiros arranha-céus de São Paulo. Afirmo ser pertinente essa lembrança para comprovar que Toledo Malta era um homem de cálculos, o que influiu visivelmente na confecção de Madame Pommery. É necessário dizer que ele tinha perfeita consciência de toda sua ousadia, e ele mesmo faz questão de deixar isso bem claro. Preveniu-se com o sugestivo pseudônimo de Hilário Tácito, que já diz muito a seu respeito. Percebam a perspicácia do nome através da união de dois adjetivos opostos. Além disso, ele teve a prudência de localizar a história numa cidade fictícia em São Paulo, chamada Botucúndia, a fim de chamar indiretamente os paulistas, daquele tempo, de “índios”. Essa sagacidade é apenas o princípio e pontapé inicial de uma obra que abusa da ironia, da sátira, da irreverência e de um cinismo detestável. Desculpem se minha sinceridade irrita alguém, mas preciso confessar que esse cinismo agudo e pretensioso me incomodou bastante.

Toledo Malta dá voz a Hilário Tácito que é o narrador de Madame Pommery. À medida que prosseguimos com a leitura, percebemos a evidente fuga às convenções do gênero. Perguntava-me: “Isto é mesmo um romance?” e logo me respondia o debochado Hilário Tácito que muito se enganava quem considerasse sua obra um romance, uma vez que constituía crônica verídica da vida e feitos de Madame Pommery. O narrador persiste na veracidade dos fatos e antes de dar início à narrativa, adverte seus leitores de que seu livro é honesto e de boa fé, e que o escreve amparado pelo bom senso, a decência e a moralidade. E sim... isso é pura ironia!

Tenho um livro póstumo do Lima Barreto, Impressões de Leitura, em que ele trata de Madame Pommery, e aprova essa mistura de gêneros adotada pelo autor, chegando a considerar ultrapassado o ato de classificar obras literárias. O criador de Policarpo Quaresma, contudo, antipatiza ter o autor saturado a obra de referências. Lima Barreto que, a meu ver, era outro pretensioso, por sua vez, tentava conquistar o mesmo que Toledo Malta. Felizmente, por mais controversa que ainda seja essa questão de gênero, ela ainda persiste e, de modo geral, todo leitor que se preze, julga importante diferir um conto de um romance, uma crônica de um ensaio, um conto de uma crônica, etc.; pois de fato existe sim uma linha de separação entre os gêneros. Negá-lo seria tolice! Quanto às inúmeras referências do livro, vou ter que concordar com o Lima. Nesse caso, como classificar Madame Pommery? Por trazer fatos e personagens fictícios, é sim um romance, mas a escrita requintada de seu autor e a forma como a obra se configura mais o aproximam de um ensaio satírico. Certamente, não tive a sensação de estar lendo um romance.

Outro fator que bastante me incomodou e que também pode ser incluso na pretensiosidade do autor é a excessiva erudição da linguagem. É impossível ler Madame Pommery sem um dicionário rsrsrs. O mais chato é que você percebe que essa erudição é mesmo forçada e presunçosa, sendo que o próprio autor o reconhece, prometendo inclusive abandonar suas “louçanias vernáculas” (vã promessa!). Aliás, todos os fatores que me incomodaram nesse livro (a linguagem, a forma, o cinismo, as digressões, etc.) são todos assinalados pelo narrador, mostrando sempre ser consciente de suas ousadias. A falar a verdade, todo o livro é muito bem calculado; os comentários satíricos são bastante pertinentes às situações narradas; os recursos humorísticos e debochados chegaram a me fazer rir em alguns momentos (e me sinto muito mal por isso rsrsrs), meio que forçando o leitor a compactuar com tanta malícia destilada.

Demoro a contar o enredo, porque assim como em O Homem que Calculava, ele está em segundo plano nessa obra. São livros completamente diferentes e parece loucura compará-los, mas a verdade é que em ambos, a literatura não passa de artifício para se atingir outros fins: um bastante louvável em Malba Tahan; outro bastante diverso e mesmo desprezível em Hilário Tácito. Mas para satisfazer os curiosos, vamos lá!

Ida Pommerikowsky é uma mulher de obscura origem. Sua mãe era uma noviça espanhola bastante fogosa que abandona o convento e acompanha um domador circense da Polônia. O veraz cronista desta história confessa não saber se Ida nasceu na Espanha ou na Polônia. O caso é que sua mãe, já não podendo mais saciar-se com o domador de feras, foge com outro amante mais lascivo. O pai de Ida é auxiliado por Zoraida, uma cigana do mesmo circo, nos cuidados da pequena. Ida aprende com facilidade os costumes ciganos. Sua sensualidade atiça os instintos bestiais de um ricaço que a estupra, mas dá-lhe uma soma em dinheiro a fim de indenizá-la. O pai de Ida já contava com aquilo, ao que parece, e já ansiava o dinheiro, mas a boa filha lhe passa a perna e combina com Zoraida uma fuga. Nem preciso dizer que o dinheiro lá se foi com elas rsrsrs. Em seguida, o narrador não conta como Ida e Zoraida se separam; o caso é que cada uma vai para seu lado, para só mais tarde reencontrarem-se. Ida torna-se uma prostituta itinerária, fazendo turnê por toda a Europa. Ganha o apelido de Pommery em virtude de sua preferência pelo champanhe francês de mesmo nome.

A então Madame Pommery acaba desejando conhecer a América e, através de um marujo de quem se faz amante, chega ao Brasil, onde ela então reencontra a tal Zoraida, agora uma senhora da alta sociedade, casada com um importante coronel. As duas se reconhecem, mas Zoraida ignora Ida, provocando-lhe um sentimento que será fulminante para o desenrolar da história. Aqui, ela pretende criar um negócio fabuloso, após observar a decadência dos pontos de divertimento, que comercializavam bebidas a preços irrisórios. A ideia de Madame Pommery é criar um estabelecimento à francesa, com artigos de luxo, conduzido por ela e suas alunas, a fim de reunir a sociedade boêmia paulista. Em outras palavras, é um cabaré arrumadinho com várias cunhãs, que comercializa bebida e sexo por altos valores. Fundava-se então o Paradis Retrouvé. O impacto representativo na economia e sociedade paulista é o que Hilário Tácito assinala como louvável mérito de sua heroína. Enfim, Madame Pommery, pouco a pouco, vai conquistando seus objetivos, à medida que usa homens influentes para tais fins, descartando-os (os homens) em seguida.

A narrativa, como já deve ter ficado claro, não é linear. O autor faz várias digressões, onde dá voo à sua sátira ferina, e segue com seu romance, levantando teses de defesa às prostituas e ao alcoolismo. Para se ter uma ideia, um dos personagens acredita ser o álcool o alimento mais necessário ao corpo humano, e revela ter planos de escrever uma tese para defender tal ponto de vista. Percebi que por diversas vezes o autor também se utiliza de sofismas para melhor se respaldar em suas teorias e considerações mais radicais. Em alguns momentos, ele chega a ser ridículo. Inconsequente, ele ataca instituições como a igreja, a família e o casamento; e é porque seu livro é “honesto e de boa fé” rsrsrs.

Esse cinismo acentuado, essas digressões cansativas, essa linguagem e forma pretensiosas me aborreceram bastante. Contudo, é inegável a engenhosidade do seu autor, especialmente quando evidencia consciência de sua ousadia e do impacto que causa no leitor. Ler Madame Pommery foi uma experiência diferente, um tanto desagradável, mas importante para conhecimento dos ideais literários daquele período, que ganharam força com a Semana de Arte Moderna. Como, porém, avalio os livros não pela importância universal ou representatividade popular que tenham, mas pelo quanto me agradaram/desagradaram enquanto leitor, concluo esta resenha fazendo a costumeira avaliação de sempre!

Avaliação: ★★
Daniel Coutinho

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