quinta-feira, 21 de julho de 2016

Sobre a saga "Rocambole", de Ponson du Terrail



Você já deve ter lido ou até mesmo ouvido falar no termo “rocambolesco”. Conheci Rocambole graças a esse dito termo, usado até hoje para designar histórias acidentadas, cheias de peripécias e reviravoltas. A palavra provém do nome do famoso personagem Rocambole, criação mais famosa do francês Ponson du Terrail. Não tem como não lembrar aquele bolo em forma de caracol rsrsrs. Pois é. Por conta de seu formato “enrolado”, o bolo acabou ganhando o nome do personagem. É meio complicado falar de Rocambole, cuja composição é tão embaraçosa quanto a própria narrativa do mesmo, mas vou tentar ser o mais esclarecedor possível, amparado em minhas pesquisas.

Ponson du Terrail (1829-1871) foi um escritor francês que ficou famoso por seus incontáveis folhetins. Ele escreveu em torno de 200 romances, para se ter uma noção. Para quem não sabe, o folhetim era a telenovela do século XIX. Os jornais traziam nos rodapés narrativas seriadas, segundo o gosto popular, a fim de garantir assinantes. De fato, muita gente adquiria o jornal apenas para acompanhar os folhetins. Podemos dizer que o folhetim foi o ganha-pão de muitos autores, não só na França, mas em praticamente todo o mundo. O auge do sucesso de Terrail como folhetinista despontou em 1857, com a estreia do seu comentado folhetim Os Dramas de Paris (Les Drames de Paris), publicado no jornal La Patrie, e projetado para ser uma “série”, cuja primeira história chamava-se A Herança Misteriosa (L'Héritage Mystérieux). Contava a história de Armand, um homem rico que pretende esquecer as fatalidades de seu passado através da filantropia, levando auxílio aos necessitados das classes menos favorecidas da sociedade francesa. Qualquer semelhança com Os Mistérios de Paris (Eugène Sue) não é mera coincidência; mas trataremos disso mais adiante. Foi em A Herança Misteriosa, primeiro folhetim da série Os Dramas de Paris, que apareceu pela primeira vez o personagem Rocambole, um anti-herói que, mesmo sendo uma figura secundária da trama, roubou a cena e conquistou o público.

Animado com a boa recepção de sua série, Ponson du Terrail, no ano seguinte, publicava a segunda história: O Clube dos Valetes de Copas (Le Club des Valets-de-cœur). Claro que não poderia deixar Rocambole de fora da nova trama. O êxito se repetiu, Rocambole ganhou novos fãs e, de tão querido pelo público, acabou virando a figura principal da série a partir da terceira história: As Proezas de Rocambole (Les Exploits de Rocambole), publicada entre 1858 e 1859. A série chegava então ao ápice, fazendo o autor escrever incansavelmente, por quatro anos, a quarta história, Os Cavaleiros do Luar (Les Chevaliers du clair de lune), entre 1860 e 1863. Terrail estava então saturado daquilo; não aguentava mais Rocambole, o bandido que mudara o destino de sua série. De fato, o título genérico Os Dramas de Paris estava esquecido. Quando mencionados, aqueles folhetins eram indicados simplesmente por Rocambole. O autor então decidiu matar o querido personagem, a fim de livrar-se da série. O público foi quem não gostou nenhum pouco da ideia. Assim, depois de mais de um ano sem novas aventuras com o amado bandido, e após ser ferozmente pressionado pelo público e por seus editores, o autor decide ressuscitar Rocambole, escrevendo a quinta história da série: A Ressurreição de Rocambole (La Résurrection de Rocambole), entre 1865 e 1866, imediatamente seguida de A Última Palavra de Rocambole (Le Dernier mot de Rocambole), publicada entre 1866 e 1867.

Se por um lado, Rocambole era idolatrado pelas massas populares; por outro, era desdenhado pela crítica, que o taxava de inverossímil, estereotipado e vulgar, dentre muitos outros defeitos. Para defender sua obra, no livro, A Verdade sobre Rocambole (La Vérité sur Rocambole, 1867), o autor revela ter se baseado em um tipo real para construir seu personagem central. Será verdade ou mera estratégia? O certo é que, de um jeito ou de outro, Rocambole acompanharia Ponson du Terrail até a morte. Entre 1867 e 1868, saía a sétima história: As Misérias de Londres (Les Misères de Londres), seguida de As Demolições de Paris (Les Démolitions de Paris, 1869). Em 1870, sairia a nona história, A Corda do Enforcado (La Corde du pendu), que acaba ficando incompleta, pois no ano seguinte, morreria Ponson du Terrail.

Não foram poucos os escritores que se aventuraram a dar continuação à saga Rocambole. Teve um português, Francisco Leite Bastos, que se sobressaiu ao escrever um final para a última história que ficara incompleta, na obra que chamou As Maravilhas do Homem Pardo, por muito tempo atribuída ao próprio Ponson du Terrail e considerada por muitos a décima e última história oficial da saga. Nem preciso dizer que Rocambole conquistou o mundo e ganhou inúmeras adaptações para cinema e teatro. O Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, era o responsável por levar as aventuras rocambolescas ao público brasileiro. Quanto às edições em livro, não sei dizer quantas foram realizadas em Brasil e Portugal, mas foram várias se contarmos as publicações avulsas, pois poucas editoras lograram editar o Rocambole na íntegra; daí a dificuldade de ler tão vasta obra em português. Sei que a Guimarães & Cia., de Portugal, editou a obra completa em vários volumes, por mais de uma vez. No Brasil, não tenho certeza, pois careço de fontes, mas penso que a editora Minerva também publicou a versão integral de Rocambole. Outras editoras lançaram volumes avulsos e versões condensadas, como foi o caso da Editora Cia. Brasil e Nova Fronteira. A primeira, em 1946, lançou em 8 volumes uma versão “mais enxuta” da saga completa (que estou louco para conseguir, pois é o mais próximo da versão integral que penso ser possível obter); a outra lançou, em 1977, sob o título As Aventuras de Rocambole, uma versão condensada de A Herança Misteriosa, que é o primeiro livro da saga. Esta edição da Nova Fronteira foi tudo que li, pois não obtive a versão integral. Nem faço apelo às editoras brasileiras, pois se elas não lançam Os Mistérios de Paris (que é obra muito mais importante), quem dirá Rocambole.

Agora, imagino que estejam curiosos para saber o que achei desse primeiro contato com a obra-prima de Ponson du Terrail. De antemão, já advirto que fiquei chateado por não conseguir a versão integral. Depois da experiência catastrófica com aquela edição condensada d’Os Mistérios de Paris, ainda estou meio traumatizado. Mas como queria muito ler Rocambole... rsrsrs Até pensei em procurar a versão “mais enxuta” da saga completa em 8 volumes, lançada pela Cia. Brasil, mas fiquei meio assustado com o preço nos sebos. Foi o jeito partir pra edição única da Nova Fronteira mesmo rsrsrs que, felizmente, é maravilhosa. Até entendo que o trabalho de tradução e adaptação tenha sido mais simples que o de Os Mistérios de Paris da Editora Eli, pois a Nova Fronteira condensou 600 páginas em 350, enquanto a Editora Eli condensou 1500 páginas em 350. Mesmo assim, ainda penso que poderiam ter feito um trabalho melhor! Sério, gente, leiam esse post/desabafo que fiz. Prometo não fazer mais links rsrsrs!

A primeira impressão que tive lendo Rocambole foi ter a certeza de que Ponson du Terrail leu Os Mistérios de Paris, de Eugène Sue. É impossível não compará-los. Felizmente, o autor de Rocambole não buscou esconder sua fonte de inspiração e mostrou que é bem possível fazer uma obra de sucesso inspirada em outra obra de sucesso. Se pensarmos no caso, foi o mesmo com Virgílio e Homero, não? Mas é necessário reconhecer que a obra do Sue é muito superior. Sou consciente de não ser a pessoa mais indicada para fazer esse tipo de julgamento, até porque, como já confessei, apenas li adaptações dessas obras; portanto, faço questão de esclarecer que minhas considerações se baseiam unicamente nas impressões absorvidas dessas edições adaptadas.

Se observarmos o teor de ambas as tramas, perceberemos intenções diferentes em cada uma delas. O romance do Sue, mesmo em moldes românticos, é essencialmente realista e visa denunciar o descaso da burguesia para com as classes mais miseráveis da sociedade parisiense. Rocambole, por outro lado, é puro entretenimento, mas o bom é que seu autor é consciente disso. Em nenhum momento seu texto dá mostras de querer ser pretensioso. O narrador de Rocambole quer apenas divertir, empolgar e, claro, emocionar o leitor. A narrativa corre em ritmo o tempo todo acelerado. Percebo que o fato da edição ser condensada pôde ter contribuído ainda mais para chegar a esta conclusão, mas em momento nenhum percebi alguma brecha ou parêntese no enredo com outra finalidade que vá além do entretenimento. Devemos lembrar que o folhetim era o ganha-pão de Terrail. Ele não estava interessado em entrar para o cânone da literatura francesa; só queria garantir seu sustento. Poderia abrir aqui uma discussão sobre a questão da literatura de entretenimento, mas julgo que este post já esteja muito longo, o que não me impede de declarar que, sim, gosto desse tipo de literatura, desde que “realmente” me entretenha!

É totalmente compreensível a crítica ter taxado Rocambole de estereotipado, pois nele, temos claramente definido o bem e o mal, personificados nos irmãos Armand e Andréia (Andréia é homem, ok?). O enredo é realmente bastante movimentado e cheio de estratégias folhetinescas: paixões proibidas, traições, envenenamentos, sequestros, duelos, e por aí vai... rsrsrs. O autor é perito na criação de tramas intrincadas e realiza a narrativa com mestria, de modo que a mesma raramente perde o interesse do leitor. O texto é repleto de diálogos e personagens simpáticos, como o próprio Rocambole, que mesmo sendo um bandido, é uma verdadeira graça rsrsrs. Embora ele só apareça quase que no final do livro, deixa sua marca registrada na trama e ganha a simpatia do leitor. Nos primeiros livros da série, Rocambole é bandido, passando gradativamente ao herói que será nos livros seguintes.

Ponson du Terrail já me conquistou com essa pequena amostra do seu Rocambole. Estou mesmo quase decidido a ir atrás da edição da Cia. Brasil, pois já estou super curioso para saber o destino desse tão querido personagem, que tanto cativou o público oitocentista e que constitui influência que repercute até os dias de hoje. Adoraria poder ler isso na íntegra! Portanto, decidi não fazer resenha da edição que li. Vou esperar uma oportunidade para, quem sabe, mais pra frente, fazer um diário de leitura da saga Rocambole completa. Torço para que isso seja possível. Vamos aguardar pra ver!

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 18 de julho de 2016

Dois Irmãos, de Milton Hatoum - RESENHA #20

Finalmente li Dois Irmãos! Foram tantas indicações; e quando finalmente resolvo ler, descubro que há uma ligação com a obra de estreia do Hatoum, Relato de um Certo Oriente, que já tem resenha por aqui. Já se sabe que não curti muito esse primeiro contato, mas esperava ser compensado com Dois Irmãos. Só que... não deu muito certo rsrsrs.

Comecei a leitura de Dois Irmãos muito animado com a história, que me conquistou imediatamente. É inevitável não compará-lo com o romance anterior do Hatoum, pois não são poucas as semelhanças. A primeira impressão que tive foi a de que Relato de um Certo Oriente não passou de um rascunho de Dois Irmãos, diante da qualidade perceptivelmente superior neste último. Deve-se levar em conta o tempo entre a publicação dos dois livros: mais de 10 anos! Reconheci um Hatoum muito mais senhor de sua narrativa. Confesso que as semelhanças com o livro anterior me incomodaram, mas essa ideia que fiz de “versão melhorada” consolou-me bastante.

Analisando superficialmente as semelhanças entre os dois romances, neles temos duas famílias de origem libanesa que residem em Manaus, sendo os cônjuges de religiões diferentes: os maridos são muçulmanos e as esposas são católicas. Os filhos desses casais são os grandes desencadeadores dos principais conflitos nas duas obras. As duas famílias se mantêm pelos rendimentos de uma loja. Poderíamos, inclusive, estabelecer um paralelo entre os livros, apontando equivalências entre os personagens. Emilie seria Zana; O marido de Emilie seria Halim; Hakim seria Yaqub; Samara Délia seria Rânia; os filhos endiabrados de Emilie seriam Omar; a narradora anônima seria Nael... E por aí vai rsrsrs. Não estou dizendo que o autor reproduziu fielmente as figuras do Relato, mas apenas assinalando uma inegável semelhança entre elas.

Como disse, comecei Dois Irmãos com bastante empolgação. O texto parecia mais fluido e agradável na voz desse novo narrador, que permanece anônimo quase que até o final do livro, quando finalmente descobrimos que se chama Nael (e desculpem se estraguei a surpresa de alguém! Mas, gente... é só um nome, né?). Ele nos conta a história de “sua” família, constituída pelo casal Zana e Halim, que possuem três filhos: Yaqub e Omar, os gêmeos; e Rânia. Completam a família: Domingas, a empregada índia; e o narrador do romance, que é filho dela.

O grande problema dessa família são os irmãos Esaú e Jacó Yaqub e Omar, que não conseguem se entender. De temperamentos e comportamentos distintos, os gêmeos não suportam um ao outro, e a convivência entre os dois se torna cada vez mais intolerável. Yaqub é moderado e estudioso; Omar é folgado e promíscuo. Na adolescência, eles se apaixonam por Flora Lívia, uma mocinha que parece dar atenção aos dois. Quando, porém, Omar surpreende a bela Lívia aos beijos com Yaqub, ele fica louco de raiva, e golpeia o rosto do irmão com um pedaço de vidro, rendendo uma eterna cicatriz a Yaqub.

Desesperado com o comportamento dos filhos, Halim pretende mandá-los para o Líbano, a fim de dar-lhes uma educação mais rigorosa, mas Zana não assente, pois superprotege Omar, o caçula, alertando para os problemas de saúde que o mesmo sempre teve desde que nasceu. Talvez, Halim quisesse mesmo livrar-se dos filhos, pois nunca os quis. Os três filhos foram planejados por Zana assim que casara: queria três. Halim só queria mesmo brincar de papai e mamãe com Zana, só que sem os filhos nessa brincadeira, se é que me entendem! O certo é que decidiram mandar apenas Yaqub para passar uma temporada no Líbano. Após cinco anos, ele regressa um tanto esquecido dos modos civilizados da cidade. Omar e ele continuam de cara feia um para o outro, principalmente agora que Yaqub deixa florescer seus dotes intelectuais de calculista, tornando-se o orgulho da casa. Decidido a viver longe da presença irritante de Omar, Yaqub vai para São Paulo estudar engenharia. Ele nega-se a receber auxílio dos pais, forma-se e casa-se com Lívia. Nem preciso dizer que ele é meu gêmeo favorito rsrsrs.

Omar, por outro lado, além de ser expulso da escola por agredir um professor, não consegue terminar os estudos, mesmo indo para outra escola de reputação duvidosa. Os pobres pais acham que São Paulo é a solução para o gêmeo incorrigível. E aí, o que vocês acham que Omar vai fazer em São Paulo? Sim... Incomodar Yaqub. A partir daí, o livro acaba perdendo aquela animosidade dos primeiros capítulos, vai adquirindo uma atmosfera mais pesada e conflituosa, além de inserir outros dramas dos demais personagens. Não é o texto que fica ruim; a trama é que fica desagradável e muitas vezes irritante. Hatoum parece ter preferência pelo Omar, que me pareceu tão insuportável, que até me irritava ler as passagens sobre ele. Não pensem também que Yaqub é um anjo de bondade, mas à vista do irmão...

O narrador vive ainda o dilema de desconfiar que é filho de um dos gêmeos. As relações familiares nas obras de Milton Hatoum me pareceram muito abomináveis. Os filhos se referem aos pais pelo nome, o tratamento entre os membros é um tanto repugnante, sobretudo nas insinuações/realizações incestuosas. Não quero ser chato, mas tenho cá meus pudores. A narrativa em Dois Irmãos é bastante escrota, mais que em Relato. Não foi, enfim, uma leitura agradável; e com isso, não nego o valor e o mérito conferidos ao autor. Já confessei por aqui que sou um tanto averso aos modernos e contemporâneos justamente por isso: essa crueza de situações torpes, vis e infames! Xô, pessimismo! rsrsrs. Que fique claro então que o meu desagrado diz respeito a uma questão puramente de gosto pessoal.

Não sou favorável a qualquer tipo de limitação artística, mas penso que, diante de tanta miséria deste mundo real, precisamos de livros que nos confortem com alguma mensagem de esperança.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 11 de julho de 2016

Relato de um Certo Oriente, de Milton Hatoum - RESENHA #19

Atenção! Esta resenha contém spoilers? Nem eu mesmo sei rsrsrs.

Definitivamente não sou um grande leitor de literatura contemporânea, nem pretendo ser. Houve um tempo em que nada me fazia ler um autor moderno ou atual; hoje, estou mais tolerante com eles, embora isso não queira dizer exatamente que “goste”. Meu fascínio sempre foram os clássicos, pois fizeram de mim um leitor. Comecei pelos brasileiros; agora, estou tendo o prazer de conhecer também os clássicos universais. A literatura do século XIX me comove sobremaneira. Claro que não estou generalizando! Minhas considerações são fruto das experiências literárias que já tive. Há sim escritores modernos e contemporâneos interessantes (para mim), mas onde tenho encontrado impressões mais tocantes e arrebatadoras é na literatura oitocentista. Às vezes, até penso que, com o passar do tempo, à medida que for realizando novas leituras modernas, posso ir tomando gosto pelos inovadores, especialmente quando leio uma Rachel de Queiroz; contudo, no geral, modernos e contemporâneos ainda são para mim um tanto decepcionantes.

Ouvi falar em Milton Hatoum, pela primeira vez, na faculdade. Um professor de Literatura comentou que ficara fascinado com a leitura de Dois Irmãos. Desde então, vez por outra, ouvia alguém falando nesse livro, sempre positivamente. Só depois, soube que se tratava de um autor vivo. Como já disse, ando mais tolerante com a literatura moderna; assim, decidi ler Dois Irmãos, para finalmente conhecer a obra de Hatoum. Soube, porém, que um livro anterior, Relato de um Certo Oriente, relacionava-se (ainda que de forma tênue) com o romance que eu queria ler. Tenho umas manias chatas comigo em relação a livros. Quando sei que um livro tem uma sequência ou alguma ligação com outras obras, preciso reuni-las todas para ler em ordem cronológica. Por isso, nunca li Agatha Christie, Balzac, Zola, dentre outros. Assim sendo, embora eu quisesse ler apenas Dois Irmãos, acabei antecipando Relato de um Certo Oriente, que é um dos livros mais estranhos que já li na vida rsrsrs.

Algo que me incomoda em autores modernos e contemporâneos é que, geralmente, fica muito visível a necessidade que eles têm de chamar atenção através de inovações, artifícios incomuns, dentre outros recursos que possam tornar suas obras diferentes, originais e impactantes. Alguns abusam do eruditismo, outros tocam em temas muito delicados, há os que inventam mil neologismos e novas formas de pontuação (isso quando não abrem mão dela), e prescindem das maiúsculas, e abusam de figuras de linguagem, misturam gêneros, fazem a desgraça enfim rsrsrs; tudo para serem diferentes, porque, é claro, é muito mais difícil compor um enredo original, forte e instigante o suficiente para dispensar tantos exageros. Mais uma vez repito: não estou generalizando! Até entendo ser muito complicado apontar quando um artifício tem intenção artística, e quando é apenas puro exibicionismo. Cada um que resolva por sua intuição rsrsrs.

Mas depois de todo esse prólogo, vocês devem estar pensando que eu odiei Milton Hatoum, não é? Odiar não é a palavra. A verdade é que esse livro dele é bem chatinho. Chatinho no diminutivo, porque sobressaem nele alguns bons momentos. O enredo, que considero o elemento mais essencial de todo texto narrativo, é que está fraquíssimo nesse romance. Mas analisemos a princípio os artifícios, deixando a história para depois.

O romance contém oito capítulos, todos narrados em 1ª pessoa. A princípio, imaginei que cada capítulo teria um narrador diferente, mas ao final, percebi que todas as vozes no romance (e há capítulos em que aparecem mais de uma) são da mesma pessoa. Essa narradora inominada é a autora do relato aludido pelo título. Ela, que vive em Manaus, está escrevendo para seu irmão que vive na Espanha. O relato consiste em uma teia de memórias dispersas sobre a infância dos dois num lar adotivo e do que sucedeu às pessoas que o compunham. Quando o texto assume uma voz ou narrador que não seja a inominada (vou chamá-la assim), é porque a mesma preferiu relatar assim mesmo, como se estivesse emprestando sua voz a alguns personagens do livro. Parece confuso? Na verdade, é confuso mesmo rsrsrs.

Acreditam se disser que gostei desse confuso e estranho artifício? Pois é; o que não gostei foi do conteúdo propriamente dito do relato. O enredo, além de ser totalmente disperso e cheio de avanços e recuos no tempo, não me cativou, não me pareceu interessante, não despertou o meu interesse. A linguagem do Hatoum não é difícil, o estilo é delicado e até poético, mas o enredo... não funcionou comigo. É tão disperso, que é até difícil de transportar para uma resenha, mas vou tentar realizar esta proeza, sempre deixando bem claro que, na obra, o mesmo não aparece assim: direitinho, linear e explicadinho rsrsrs.

Emilie veio do Líbano para o Brasil, acompanhada de seus irmãos Emir e Emílio, por decisão de seus pais. Ela é casada com um islamita cujo nome não é revelado. O problema do casal é a diferença religiosa, pois Emilie é católica, mas os dois tentam manter o respeito, na medida do possível. Eles têm uma loja em sua residência denominada Parisiense. Conforme a família vai aumentando, eles veem a necessidade de mudar para uma casa maior, e passam a viver num sobrado, mas o esposo de Emilie não deixa de dar assistência na Parisiense. O casal tem quatro filhos biológicos: Hakim, Samara Délia e dois mais novos que são verdadeiros demônios, autores das piores selvagerias (as empregadas de Emilie que o digam). A família conta com o apoio da lavadeira Anastácia nos serviços domésticos, pois ela não tem atrativos físicos para tentar os demônios da casa (sempre que falar em demônios, estarei me referindo aos dois filhos mais novos de Emilie, cujos nomes também não são revelados).

A família vive sua rotina comum, entremeada de problemas, naturais em qualquer família. A verdade é que mesmo nesse ambiente comum, temos uma família excêntrica, onde o patriarca quebra as imagens de gesso da esposa católica; e ela, para vingar-se, resolve esconder o Alcorão do marido, o que o leva a fechar portas e janelas da casa, vedando o movimento de todos, até encontrar seu sagrado livro. A excentricidade de Emilie também pode ser observada no seu fascínio por um relógio negro que havia no convento em que esteve no Líbano, de onde saiu graças à chantagem de Emir, seu irmão, que jurou suicídio se a irmã insistisse em permanecer no claustro. No Brasil, ela trocou seu papagaio que recitava a ave-maria e um versículo do Deuteronômio por um relógio similar, que emitia em suas badaladas o mesmo som que fascinava Emilie no convento.

A família decide ainda adotar duas crianças: a autora do relato e o irmão dela. Essas duas crianças vão ter como companheira de brincadeiras uma menininha surda-muda chamada Soraya Ângela, filha bastarda de Samara Délia, que a concebera na adolescência. O nascimento dessa criança ilegítima causa grande alvoroço na casa de Emilie, revoltando especialmente o senhor da casa e os demônios. A menina acaba se isolando do convívio social, preferindo a companhia dos animais, além de ter herdado o fascínio de Emilie pelo tal relógio. Soraya acaba morrendo num terrível acidente na rua, que é sempre citado de forma muito obscura, mas imagino que ela tenha sido atropelada. Essa tragédia causa um grande impacto na família de Emilie, que a partir daí, começa a se dispersar.

Poderia continuar enumerando mil outras recordações desse relato, que é na verdade um tecido de memórias, como disse Alfredo Bosi. E o livro é isso mesmo: um punhado de lembranças dispersas reunidas, evocadas por uma mulher que precisa encontrar-se, descobrir a si mesma. Não me pareceu atraente, mas teve lá algo de sutil. Confesso que fiquei desmotivado para ler Dois Irmãos, mas estou decidido a fazê-lo o quanto antes. É isso aí! Vamos dar mais uma chance a Milton Hatoum... e ver no que vai dar rsrsrs.

Avaliação: ★★
Daniel Coutinho

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segunda-feira, 4 de julho de 2016

Madame Pommery, de Hilário Tácito - RESENHA #18

Eis um livro que representa muito bem as propostas do Modernismo. Alguns críticos preferem encaixá-lo no Pré-Modernismo, por ter sido publicado em 1919, portanto, antes da semana de 22; mas a verdade é que tanto a forma como o estilo de Madame Pommery mostram o quanto seu autor, Hilário Tácito, estava distanciado do modelo de romance do século XIX.

Confesso que sou meio apático à literatura moderna, especialmente por essa bagunça de gêneros entrelaçados e sobretudo por julgá-la bastante pretensiosa. Não quero generalizar, mas a verdade é que muitos autores modernos, a meu ver, queriam mais chamar atenção do que produzir arte; e a maneira que lhes estava mais à mão era uma busca incessante pelo “diferente”, aspectos que lhes rendessem originalidade, recursos radicais o suficiente para que pudessem figurar como autores modernos e preocupados com o desenvolvimento da literatura nacional.

Nem queria tocar nesse assunto, mas a leitura de Madame Pommery não tinha como não trazê-lo à tona, até porque essa obra se encaixa perfeitamente nisso tudo que citei. O autor de Madame Pommery queria a todo custo um lugar na literatura, e não poupou recursos para conquistá-lo. Foi bastante pretensioso ao querer compor uma obra que exalasse uma novidade estupenda que causasse forte impacto em seus contemporâneos; e, podemos dizer, acabou conseguindo.

José Maria de Toledo Malta (1885-1951) trabalhou com bastante perícia e cálculo na fabricação de seu único romance. É pertinente lembrar que ele foi importante engenheiro civil de seu tempo, participando na construção dos primeiros arranha-céus de São Paulo. Afirmo ser pertinente essa lembrança para comprovar que Toledo Malta era um homem de cálculos, o que influiu visivelmente na confecção de Madame Pommery. É necessário dizer que ele tinha perfeita consciência de toda sua ousadia, e ele mesmo faz questão de deixar isso bem claro. Preveniu-se com o sugestivo pseudônimo de Hilário Tácito, que já diz muito a seu respeito. Percebam a perspicácia do nome através da união de dois adjetivos opostos. Além disso, ele teve a prudência de localizar a história numa cidade fictícia em São Paulo, chamada Botucúndia, a fim de chamar indiretamente os paulistas, daquele tempo, de “índios”. Essa sagacidade é apenas o princípio e pontapé inicial de uma obra que abusa da ironia, da sátira, da irreverência e de um cinismo detestável. Desculpem se minha sinceridade irrita alguém, mas preciso confessar que esse cinismo agudo e pretensioso me incomodou bastante.

Toledo Malta dá voz a Hilário Tácito que é o narrador de Madame Pommery. À medida que prosseguimos com a leitura, percebemos a evidente fuga às convenções do gênero. Perguntava-me: “Isto é mesmo um romance?” e logo me respondia o debochado Hilário Tácito que muito se enganava quem considerasse sua obra um romance, uma vez que constituía crônica verídica da vida e feitos de Madame Pommery. O narrador persiste na veracidade dos fatos e antes de dar início à narrativa, adverte seus leitores de que seu livro é honesto e de boa fé, e que o escreve amparado pelo bom senso, a decência e a moralidade. E sim... isso é pura ironia!

Tenho um livro póstumo do Lima Barreto, Impressões de Leitura, em que ele trata de Madame Pommery, e aprova essa mistura de gêneros adotada pelo autor, chegando a considerar ultrapassado o ato de classificar obras literárias. O criador de Policarpo Quaresma, contudo, antipatiza ter o autor saturado a obra de referências. Lima Barreto que, a meu ver, era outro pretensioso, por sua vez, tentava conquistar o mesmo que Toledo Malta. Felizmente, por mais controversa que ainda seja essa questão de gênero, ela ainda persiste e, de modo geral, todo leitor que se preze, julga importante diferir um conto de um romance, uma crônica de um ensaio, um conto de uma crônica, etc.; pois de fato existe sim uma linha de separação entre os gêneros. Negá-lo seria tolice! Quanto às inúmeras referências do livro, vou ter que concordar com o Lima. Nesse caso, como classificar Madame Pommery? Por trazer fatos e personagens fictícios, é sim um romance, mas a escrita requintada de seu autor e a forma como a obra se configura mais o aproximam de um ensaio satírico. Certamente, não tive a sensação de estar lendo um romance.

Outro fator que bastante me incomodou e que também pode ser incluso na pretensiosidade do autor é a excessiva erudição da linguagem. É impossível ler Madame Pommery sem um dicionário rsrsrs. O mais chato é que você percebe que essa erudição é mesmo forçada e presunçosa, sendo que o próprio autor o reconhece, prometendo inclusive abandonar suas “louçanias vernáculas” (vã promessa!). Aliás, todos os fatores que me incomodaram nesse livro (a linguagem, a forma, o cinismo, as digressões, etc.) são todos assinalados pelo narrador, mostrando sempre ser consciente de suas ousadias. A falar a verdade, todo o livro é muito bem calculado; os comentários satíricos são bastante pertinentes às situações narradas; os recursos humorísticos e debochados chegaram a me fazer rir em alguns momentos (e me sinto muito mal por isso rsrsrs), meio que forçando o leitor a compactuar com tanta malícia destilada.

Demoro a contar o enredo, porque assim como em O Homem que Calculava, ele está em segundo plano nessa obra. São livros completamente diferentes e parece loucura compará-los, mas a verdade é que em ambos, a literatura não passa de artifício para se atingir outros fins: um bastante louvável em Malba Tahan; outro bastante diverso e mesmo desprezível em Hilário Tácito. Mas para satisfazer os curiosos, vamos lá!

Ida Pommerikowsky é uma mulher de obscura origem. Sua mãe era uma noviça espanhola bastante fogosa que abandona o convento e acompanha um domador circense da Polônia. O veraz cronista desta história confessa não saber se Ida nasceu na Espanha ou na Polônia. O caso é que sua mãe, já não podendo mais saciar-se com o domador de feras, foge com outro amante mais lascivo. O pai de Ida é auxiliado por Zoraida, uma cigana do mesmo circo, nos cuidados da pequena. Ida aprende com facilidade os costumes ciganos. Sua sensualidade atiça os instintos bestiais de um ricaço que a estupra, mas dá-lhe uma soma em dinheiro a fim de indenizá-la. O pai de Ida já contava com aquilo, ao que parece, e já ansiava o dinheiro, mas a boa filha lhe passa a perna e combina com Zoraida uma fuga. Nem preciso dizer que o dinheiro lá se foi com elas rsrsrs. Em seguida, o narrador não conta como Ida e Zoraida se separam; o caso é que cada uma vai para seu lado, para só mais tarde reencontrarem-se. Ida torna-se uma prostituta itinerária, fazendo turnê por toda a Europa. Ganha o apelido de Pommery em virtude de sua preferência pelo champanhe francês de mesmo nome.

A então Madame Pommery acaba desejando conhecer a América e, através de um marujo de quem se faz amante, chega ao Brasil, onde ela então reencontra a tal Zoraida, agora uma senhora da alta sociedade, casada com um importante coronel. As duas se reconhecem, mas Zoraida ignora Ida, provocando-lhe um sentimento que será fulminante para o desenrolar da história. Aqui, ela pretende criar um negócio fabuloso, após observar a decadência dos pontos de divertimento, que comercializavam bebidas a preços irrisórios. A ideia de Madame Pommery é criar um estabelecimento à francesa, com artigos de luxo, conduzido por ela e suas alunas, a fim de reunir a sociedade boêmia paulista. Em outras palavras, é um cabaré arrumadinho com várias cunhãs, que comercializa bebida e sexo por altos valores. Fundava-se então o Paradis Retrouvé. O impacto representativo na economia e sociedade paulista é o que Hilário Tácito assinala como louvável mérito de sua heroína. Enfim, Madame Pommery, pouco a pouco, vai conquistando seus objetivos, à medida que usa homens influentes para tais fins, descartando-os (os homens) em seguida.

A narrativa, como já deve ter ficado claro, não é linear. O autor faz várias digressões, onde dá voo à sua sátira ferina, e segue com seu romance, levantando teses de defesa às prostituas e ao alcoolismo. Para se ter uma ideia, um dos personagens acredita ser o álcool o alimento mais necessário ao corpo humano, e revela ter planos de escrever uma tese para defender tal ponto de vista. Percebi que por diversas vezes o autor também se utiliza de sofismas para melhor se respaldar em suas teorias e considerações mais radicais. Em alguns momentos, ele chega a ser ridículo. Inconsequente, ele ataca instituições como a igreja, a família e o casamento; e é porque seu livro é “honesto e de boa fé” rsrsrs.

Esse cinismo acentuado, essas digressões cansativas, essa linguagem e forma pretensiosas me aborreceram bastante. Contudo, é inegável a engenhosidade do seu autor, especialmente quando evidencia consciência de sua ousadia e do impacto que causa no leitor. Ler Madame Pommery foi uma experiência diferente, um tanto desagradável, mas importante para conhecimento dos ideais literários daquele período, que ganharam força com a Semana de Arte Moderna. Como, porém, avalio os livros não pela importância universal ou representatividade popular que tenham, mas pelo quanto me agradaram/desagradaram enquanto leitor, concluo esta resenha fazendo a costumeira avaliação de sempre!

Avaliação: ★★
Daniel Coutinho

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