segunda-feira, 30 de maio de 2016

Os Mistérios de Udolpho (The Mysteries of Udolpho), de Ann Radcliffe - RESENHA #14


*


Quando soube que Oscar e Amanda (1796), de Regina Maria Roche rivalizou a popularidade de Os Mistérios de Udolpho (1794), de Ann Radcliffe, e eu já tinha lido o primeiro, fiquei bastante curioso para ler o tal Udolpho, imaginando que seria tão bom quanto o outro. Coincidentemente, a Editora Pedrazul tinha acabado de lançar, ano passado, numa edição em 2 volumes, Os Mistérios de Udolpho, que é mais conhecido por ter sido citado em A Abadia de Northanger, por Jane Austen. Desejo ardentemente que Oscar e Amanda também seja lançado, uma vez que, assim como Udolpho, também é citado no já referido livro da Jane Austen (com o título original, é claro: The Children of the Abbey).

Finalmente li Udolpho e não... Não foi melhor que Oscar e Amanda que, a meu ver, possui um enredo muito mais interessante e inteligente. O romance da Radcliffe não é ruim, mas possui uma série de defeitos que acabam comprometendo a integridade da obra. Por outro lado, reconheço que o livro possui certas qualidades, a começar por ser um dos primeiros romances góticos escritos por uma autora inglesa. O pior defeito da obra é ser demasiadamente extensa por conta de episódios desnecessários que em nada contribuem para o desenvolvimento da narrativa. Passemos então ao enredo para melhor identificar minhas considerações acerca desse livro.

Em 1584, na província da Gasconha, na França, morava a família de Monsieur St. Aubert no castelo denominado La Valée. Antigamente, era bastante comum nomear as grandes propriedades da nobreza, especialmente na Europa. Em La Valée, residiam St. Aubert, sua esposa, seus três filhos e alguns criados. St. Aubert é um homem simples e apaixonado por botânica; daí sua ideia de abandonar os progressos da capital para residir num ambiente todo cercado pelas belezas e paisagens naturais. De uma moral bastante elevada, ele educa os filhos de acordo com seus princípios mais nobres, até ser fulminado pela morte de dois deles, restando-lhe somente a jovem e bela Emily, a quem St. Aubert passa a dedicar-se com máximo empenho.

Esses três entes queridos amam-se com dedicação e compartilham das mesmas afeições, sobretudo a paixão pela natureza. Os primeiros capítulos de Udolpho descrevem minuciosamente diversas cenas contemplativas, em que nossos três personagens apreciam os detalhes das belezas naturais: as árvores, flores, penhascos, vales, bosques... Radcliffe é uma verdadeira paisagista; ela escreve dezenas de páginas dedicadas às descrições das paisagens, o que torna a leitura bastante cansativa e quase dormi em alguns momentos rsrsrsrs. Até gosto e aprecio paisagens, mas as descrições da autora são bastante exageradas mesmo, e acredito que isso chega a ser um defeito. (E dizem que José de Alencar descrevia paisagens... Leiam Udolpho, que vocês verão!) Um fato interessante é que, num desses passeios, Emily descobre ter um admirador secreto, ao ver uns versos escritos numa cabine de pesca da família.

A morte da mãe de Emily é outro acontecimento que abala a família St. Aubert. Emily, porém, fica intrigada, por esse tempo, ao surpreender o pai chorando e beijando a fotografia de uma mulher que não era Madame St. Aubert; a garota, em respeito ao pai, prefere silenciar o caso. O viúvo acaba tendo sua saúde agravada e é recomendado por um médico a viajar para respirar os ares de Languedoc. Naquele tempo, o ar de certos lugares era um forte lenitivo rsrsrs. St. Aubert atende o conselho médico e prepara carros e cavalos para seguir uma jornada até Languedoc. Mas não pensem que ele segue o caminho convencional e mais direto; antes, prefere fazer um arrodeio que torna a viagem muito mais longa, com o fim de apreciar paisagens e mais paisagens românticas. Vocês devem imaginar o que acontece agora, sim?! Exatamente: descrições, descrições e mais descrições de toda a jornada, de cada galhinho dos vários tufos agrestes, de cada ladeira íngreme... Tudo isso me fez pensar que a Sra. Radcliffe daria uma perfeita escritora de livros de viagens, daqueles que eram bastante comuns até meados do século passado. Outro defeito: a lentidão da narrativa. É necessária muita paciência neste ponto do enredo.

Durante a jornada, St. Aubert é surpreendido por um estranho caçador que aparece no meio do caminho. Trata-se de Valancourt, que acaba fazendo-se amigo de todos. Esse moço é uma espécie de aventureiro que pratica a caça mais por diversão do que por necessidade, e é outro admirador de paisagens naturais; daí a fácil interação com St. Aubert. Valancourt decide acompanhar aqueles novos amigos até certo ponto da viagem, fazendo-lhes orientações e tirando certas dúvidas em relação ao caminho. Acabei esquecendo de dizer que outro fator que permeia toda a obra de Radcliffe é a poesia. Todos os capítulos são introduzidos por trechos de poemas de escritores famosos, além do que, por diversas vezes, a autora completa ideias que formula a partir de citações diretas de poetas, sobretudo Thomson, Milton e Shakespeare. Em várias das cenas contemplativas, Emily compõe poemas, além de estar sempre acompanhada de algum livro de Ariosto, passando também a apreciar Petrarca por influência de Valancourt que, nem preciso dizer, é o mocinho da história: um dos mais chatos que já conheci também, e logo direi por quê.

Para não perder o ar fúnebre da história, St. Aubert acaba morrendo num dos vários chalés em que sua comitiva se hospeda. Essas hospedagens constituem o defeito que já citei das cenas desnecessárias e que só servem para dar volume ao livro que possui mais de 600 páginas daquelas que não poupam papel mesmo rsrsrsrs. O chalé onde morre St. Aubert fica próximo a um tenebroso castelo, que não é Udolpho! Trata-se do mal-assombrado Chateau-le-Blanc, que está desabitado desde a morte de uma tal Marquesa de Villeroi, que quando citada pelo dono do chalé, causa uma medonha impressão em St. Aubert, o que talvez tenha até colaborado para sua morte. Antes de morrer, St. Aubert incumbe sua filha de voltar a La Valée para destruir certos documentos que não deveriam ser lidos nem pela própria Emily. Nossa heroína fica ainda mais intrigada com o pedido do pai, pois também observara a reação dele quando feita alguma menção à Marquesa de Villeroi. St. Aubert pedira ainda que Emily fosse morar com sua tia: Madame Cheron; e que sepultassem seu corpo num convento próximo dali, junto ao túmulo dos Villeroi.

Emily regressa a La Valée para cumprir o pedido de seu pai, mas antes de destruir os tais papéis, involuntariamente passa os olhos por eles, e percebe algo que lhe faz estremecer. Ao longo de todo o romance, a autora vai acumulando inúmeros mistérios que só serão solucionados nos capítulos finais do livro; e isso dá muita raiva no leitor, porque o entendimento de diversas passagens da obra fica sempre comprometido pela falta dessas revelações, mas percebo claramente que essa era a intenção da autora: perturbar o leitor. Em La Valée, quem aparece inesperadamente? Valancourt, que finalmente declara seu amor por Emily. A tímida garota fica ainda mais desconcertada com a surpreendente aparição de Madame Cheron, que logo faz um mau julgamento da sobrinha, por ela estar a sós com um homem.

Emily recebe as censuras de sua tia e vai morar com ela em Toulouse (residência de Madame Cheron). A austera tia proíbe encontros entre sua sobrinha e Valancourt, pois descobre ser ele mais ou menos um pé-rapado, que vive sob a proteção de um irmão mais velho. Após ficar sabendo, contudo, sobre um parentesco entre o amado de Emily e Madame Clairval, uma influente senhora, Madame Cheron consente em que o distinto moço visite sua sobrinha. Essa fase é uma das mais agradáveis de Udolpho; quero dizer: depois de tanta lentidão e contemplação, temos finalmente um pouco de movimento e animosidade no enredo. A relação entre Emily e Valancourt se fortalece nesse período e os dois desejam casar-se urgentemente. Mas como estamos diante de um movimentado romance do século XVIII, nada se consegue tão fácil. A viúva Madame Cheron que, ainda um tanto jovem, tem lá suas necessidades carnais, recebe os galanteios de Montoni, um cavalheiro italiano com ares de rico, e acaba casando-se com ele.

Agora, por favor, permitam que me detenha um pouco nesse importante personagem; deixem-me defendê-lo também, pois o diabo não é tão feio como se pinta. Digo isso porque, antes de ler Udolpho, percebi certa propagação da figura de Montoni como um ser perverso, abominável e um terrível vilão. Esperava, portanto, um vilão daqueles! Mas a verdade é que Montoni é tão fraco vilão quanto fraco herói é Valancourt. A vilania de Montoni se manifesta unicamente através de sua exacerbada ambição. O desejo de ser mais e mais rico foi que o levou a casar-se com Madame Cheron que, por sua vez, casou-se com ele, vislumbrando também alguma fortuna. Quando Montoni percebe que a viúva nem era tão rica assim, e quando ela toma conhecimento da real condição de seu adorável marido, o casamento dos dois acaba se tornando insuportável. O plano de Montoni, portanto, é apoderar-se dos bens de Madame Montoni (Madame Cheron passa a ser denominada assim) e tirar algum proveito de Emily, a partir de uma aliança vantajosa que deseja obter para ela. Definitivamente, Valancourt não corresponde aos interesses de Montoni; por isso mesmo, ele proíbe o casamento dos apaixonados, decidindo ainda levar toda a sua nova família para morar no castelo de Udolpho, na Itália. Aceito que ele não agiu bem, que é um mau-caráter, um homem egoísta, ganancioso e tudo o mais; mas não me pareceu o cruel vilão que muita gente pintou. O coronel Belgrave (de Oscar e Amanda) e a Condessa de Roskelin (de Saint-Clair das Ilhas) são muito piores no que diz respeito à realização de maldades e baixezas.

Valancourt propõe uma fuga a Emily, que é impedida por seus escrúpulos de optar por tal atitude. O casalzinho se despede e Emily vai para seu calvário em Udolpho. Algumas pessoas atribuem esse calvário unicamente a Montoni, por ter sido ele quem levou Emily para lá, mas percebi que considerável parte dos sofrimentos e aflições passados pela jovem é provocada por outros fatores e personagens, como o Conde Morano, que julgo muito mais vil e detestável que o próprio Montoni. Esse Conde Morano, do círculo de amizades do novo tio de Emily, acaba se apaixonando pela garota, e é o pretendente favorito de Montoni, pois ele pensa que o Conde é possuidor de grande fortuna. Quando, porém, é descoberta a real situação do Conde, Montoni prefere descartá-lo, o que deixa Morano bastante revoltado e decidido a optar por um ardiloso e hostil plano para raptar Emily.

Montoni insiste que sua Madame passe para seu nome suas propriedades imediatamente, temendo que, com a morte dela, Emily herde esses bens. Madame Montoni não atende às relutâncias do marido, o que torna o comportamento dele ainda mais áspero para com ela. Logo, Emily e sua tia percebem que estão praticamente encarceradas em Udolpho, sob o julgo de Montoni que, ainda em seus planos de fazer fortuna, forma uma espécie de banco de soldados para atender às necessidades guerrilheiras da época, mas o bando acaba investindo de maneira ilegal por onde passa, ganhando inclusive fama de saqueador. Uma tentativa de envenenamento faz Montoni desconfiar de todos em Udolpho, mas ele tem uma suspeita maior sobre sua mulher; por esse motivo, ele a encarcera num quarto isolado do castelo, abandonando-a à sua própria sorte. De todas as maldades de Montoni, essa foi a mais grave. Os paratextos da edição da Pedrazul dão a informação de que Montoni privou sua senhora de água e comida, mas penso que isso foi um equívoco da editora, pois não percebi nenhuma passagem que afirmasse tal privação. Do que Montoni realmente privou sua senhora foram de cuidados e remédios quando a mesma adoeceu em seu isolamento.

Agora, detenhamo-nos na pressão sobrenatural do castelo de Udolpho sobre Emily. Além da inevitável preocupação com sua tia, Emily tem grandes sustos ao longo de toda sua estadia em Udolpho, a começar pelo seu próprio quarto que possui uma porta de comunicação com uma escadaria secreta, o que parece muito suspeito e perigoso. Eis um talento que Radcliffe deixou bastante evidenciado em seu romance: a tenuidade entre o real e o sobrenatural. Passos misteriosos, passagens secretas, vozes soturnas, aparições não identificadas, sons de música em horários inviáveis, relatos sobrenaturais; todos esses recursos típicos do romance gótico foram muito bem utilizados na construção de cenas de suspense muito bem realizadas. Todos esses elementos do gótico unidos às inquietações de Emily sobre a misteriosa relação entre seu pai, a Marquesa de Villeroi e o castelo de Udolpho dão ao livro uma atmosfera bastante instigante (em momentos). Enquanto Emily padece horrores em Udolpho, Valancourt vai se divertir na boemia e no mundo do jogo, pois desesperançado em relação a Emily, acredita ser necessário esquecê-la. Acho que isso já deixa bem claro o quão chato ele é! Senti falta de um herói de verdade em alguns momentos, e como a própria autora parecia ser consciente do fracasso do seu herói, ela encarrega personagens secundários (como Ludovico e Monsieur Du Pont) de algumas missões heroicas.

Outra coisa que me incomodou bastante no livro foi a falta de criatividade da autora na confecção de personagens e espaços importantes, de maneira que temos repetições constantes de várias figuras, elementos e situações. A tensão perturbadora passada por Emily em Udolpho assemelha-se bastante à que a mesma passará em Chateau-le-Blanc, em outro momento do livro. O mistério sobre o destino da Marquesa de Villeroi também se assemelha ao inexplicável fim de Lady Laurentini, antiga moradora de Udolpho. Em suma: temos dois castelos mal-assombrados que encobrem segredos sobre suas antigas moradoras. Em alguns momentos, eu confundia muito as duas damas e seus mistérios, dada a semelhança das histórias e ao elo obscuro entre elas. Em outro momento, o livro apresenta a família do Conde de Villefort, homem cujo caráter é bastante semelhante ao do falecido St. Aubert; e de sobra, ele tem uma filha, Lady Blanche, que é a própria Emily, com seus instrumentos musicais, contemplações da natureza e poemas de inspiração paisagística. Essa família herdou o castelo de Chateau-le-Blanc com a morte do Marquês de Villeroi, pois o Conde de Villefort era primo dele. Monsieur Du Pont, que já citei como personagem secundário, é o próprio Valancourt antes da perversão. E poderia citar mais exemplos, mas esse negócio já está me saindo maior do que previ. E vocês não devem estar entendendo mais nada rsrsrs.

Agora, finalmente, deixem-me fazer este desabafo final sobre minha reação daquilo que julguei ser um defeito incorrigível em Udolpho, e um dos que mais me incomodaram também. Além da forma como Radcliffe construiu sua narrativa ser um tanto inconveniente, especialmente pelas cansativas descrições de paisagens e hiatos totalmente desnecessários, a força do romance, que está de certo modo nos mistérios que vão sendo acumulados durante MUITO TEMPO ao longo de TODO O LIVRO, acaba fraquejando, e a obra meio que desmorona ante o descontentamento do leitor. Isto porque a solução e explicações que deslindam todos os mistérios não me pareceram muito convincentes, ou pelo menos foram insuficientes, pois depois que você lê um livro que faz mil especulações sobre aquilo que parece ser um dos maiores mistérios do mundo, e que você se depara com uma solução tão boba (eu diria), todo o resto da história parece ter sido irrelevante. Deixo claro que esta e todas as demais impressões relatadas anteriormente são de cunho estritamente pessoal.

Pronto! Acho que deixei bem claro o que vi de bom e ruim em Udolpho, sem revelar o fabuloso segredo do livro. Apesar dos defeitos apontados, imagino que tenha ficado perceptível o valor da obra e até mesmo alguma novidade que ela trouxe, não só por ter sido uma das pioneiras do romance gótico, mas por todas suas sutilezas. Se vale a pena ler? Isso depende de quem for ler. Pra mim, não foi ótimo ou excelente, mas foi bom. Se Radcliffe tivesse melhor enxugado sua obra, excluindo as descrições e hiatos desnecessários, o livro continuaria sendo só isso: bom; mas, ao menos, teria me poupado um tempão! No mais, a experiência, sendo positiva ou negativa, é sempre válida; e isto é o que conta, não? Mas esse, definitivamente, não é um livro que eu pretenda reler!

Desculpem-me por ter me estendido tanto! Precisava disso... rsrsrsrs.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

*** 

Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com

sábado, 28 de maio de 2016

Mais Livros! - MAI/2016



O Mais Livros! deste mês está repleto de títulos muito ansiados. Muitos deles vieram preencher certas lacunas que considerava inadmissíveis rsrsrs. Mais uma vez demorei, e a postagem está saindo de novo atrasada (mas a tempo) por conta de umas coisinhas que ainda estou aguardando e que portanto ficarão para junho. Nem por isso, o saldo do mês está menos interessante.

A começar pelos estrangeiros, adquiri uma obra que já tinha na minha casa em vários exemplares até; e que, imagino, todo mundo deve ter, pelo menos uma. Estou falando obviamente da Bíblia. Quando disse “todo mundo” foi porque, mesmo sabendo que o Brasil é um país bastante heterogêneo em se tratando de religião, sabemos que o cristianismo predomina não só aqui como em quase todo o mundo. Venho de uma família cristã protestante e cresci segundo uma educação pautada pelos preceitos bíblicos. Há alguns anos, abandonei a religião, por motivos um tanto difíceis de explicar aqui e que, na verdade, nem vêm ao caso. Em poucas palavras, a maturidade que a gente vai adquirindo com o passar dos anos nos faz enxergar a vida e o mundo com um olhar mais amplo e de maior alcance; de repente, você começa a entender coisas, como a maneira pela qual as pessoas entendem Deus. Creio em Deus, mas não sou adepto de religiões que, a meu ver, separam as pessoas. Nem por isso, fecho os olhos para um livro tão importante (por mil motivos) como a Bíblia. De fato, são inegáveis os valores que ela acarreta, sejam históricos, filosóficos, sociológicos e até literários, para só citar alguns. Precisava de uma edição confiável, que não fosse influenciada por ideologias cristãs, judaicas, etc.; afinal, meu interesse pela fidelidade do texto bíblico é puramente enquanto leitor.

Daí, pesquisando e consultando alguns colegas, conheci a Bíblia de Jerusalém, que é considerada a tradução mais ecumênica da Bíblia, dada a antologia de tradutores constituída por representantes das mais diversas ideologias. Era enfim a tradução que mais atendia às minhas expectativas; por isso, não pensei duas vezes, e adquiri a edição em tamanho GRANDE da Paulus Editora, porque queria uma edição para leitura mesmo e não apenas consulta, e já confessei que tenho pavor a letra miúda rsrsrs. A edição está lindíssima, com textos de apoio, milhares de rodapés explicativos, letra em tamanho maravilhoso, mapas e outros recursos suplementares que dão suporte e auxílio ao leitor. Tudo isso distribuído em 2200 páginas convenientemente aproveitadas. Agora, o problema: gente, que papel é esse? Juro como nunca vi nada tão fino em toda minha vida, e olha que já tive contato com os mais diversos tipos de “papel bíblia”. O menor descuido e você rasga uma página sem nem perceber rsrsrs. Não estou dizendo que é papel de má qualidade; ao contrário, é excelente. O problema mesmo é que, por ser tão fino, é meio desconfortável de manusear, passar a página; fazer recuos e avanços no texto é, portanto, quase que impraticável. Tô só pensando em como vou ler isso com o ventilador ligado rsrsrsrs. Mas, enfim, como não é uma leitura pra já, quem sabe, quando for ler, já tenha um ar-condicionado no meu quarto! Acho meio difícil...

Mas não, não vou passar o post inteiro falando da Bíblia! rsrsrs.

Depois de adquirir os contos de Charles Perrault e dos irmãos Grimm, faltava ele: Hans Christian Andersen. A Cosac Naify, infelizmente, não ousou lançar a obra desse famoso dinamarquês, mas felizmente consegui uma edição maravilhosa em dois volumes da Villa Rica Editora. Essa Villa Rica é a mesma Garnier que editou Machado de Assis no século XIX, e foi mudando de nome várias vezes: Briguiet, Itatiaia, Garnier de novo, Villa Rica, Itatiaia de novo... Nunca entendi essa confusão de nomes rsrsrs. Mas, ao que parece, todas elas são a mesma editora. Enfim, eles lançaram em 1996 a obra completa do Andersen sob o título Histórias e Contos de Fadas, ricamente ilustrada, totalizando 1400 páginas em papel bíblia (esse manuseável rsrsrsrs). Não foi traduzido do dinamarquês, mas de uma edição americana bastante confiável. Andersen é autor de clássicos infantis como O Soldadinho de Chumbo, O Patinho Feio, A Pequena Sereia, e muitos outros. Quando pesquisava uma boa edição da obra de Andersen, acabei descobrindo que à obra completa da Villa Rica ficaram faltando os três últimos trabalhos do autor, que foram descobertos após sua morte. Felizmente, a mesma editora, agora com o nome de “Itatiaia”, lançou esses trabalhos no volume Últimos Contos. Consta-me haver uma edição portuguesa muito boa da obra completa do Andersen, mas não achei para comprar no Brasil. Alguém sabe dizer se ela foi traduzida do original e se contém os Últimos Contos também? Fiquei curioso.

Saindo da Dinamarca e passando a Inglaterra, da queridíssima Pedrazul adquiri Evelina, da Frances Burney, escritora que abriu caminho às mulheres na literatura inglesa. Esse pioneirismo por si só já justifica meu interesse e, sinceramente, estou me apaixonando cada vez mais pelos ingleses. Da literatura francesa, que já é paixão mais antiga, consegui o Jocelyn, do Lamartine. Já tinha vários romances em prosa dele, como Graziela e Geneviève; julguei necessário um romance em versos, o que foi muito difícil de conseguir em português, mas por sorte, descobri essa tradução antiquíssima (e acho que única) do Jocelyn. Na sequência francesa, adquiri o clássico Manon Lescaut (Abade Prévost) em edição daquela coleção lindinha e antigona da editora abril: Grandes Sucessos (a versão de capa branca); mas o que mais me agradou foi quando vi o nome do tradutor Araújo Nabuco, que muito aprecio desde que li a tradução dele de Madame Bovary, da mesma coleção. E do grande Júlio Verne, consegui finalmente um exemplar de À Roda da Lua, que é uma sequência de outro romance dele, Da Terra à Lua, que eu já possuía.

Adquiri também um romance alemão. Eis uma novidade. Não tenho quase nada dos alemães. Mas para decepção de muitos, escolhi um romance róseo rsrsrsr. Fale quem quiser falar, gosto de ler vez por outra algo do tipo, mas só simpatizo esses antigões daquelas coleções para moças e jovens senhoras. Às vezes, tenho belas surpresas: O Pecado das Mães (Henri Ardel), por exemplo, que li ano passado, entrou para meu TOP 10 de melhores leituras do ano. Desta vez, o escolhido para aquisição foi Elisabete dos Cabelos de Ouro, da alemã Eugênia Marlitt. A edição é em dois volumes e pertence à Coleção Rosa, que a editora Saraiva editava em meados do século passado, especialmente para as moças brasileiras, publicando, em sua maioria, romances estrangeiros. Dessa coleção, eu já tinha Nina, do Joaquim Manuel de Macedo. Agora, se me perguntarem por que, dentre tantos títulos da Coleção Rosa, escolhi Elisabete dos Cabelos de Ouro... Riam se quiserem, mas adorei esse título kkkkk. Quem nunca leu um livro pelo título, atire a primeira pedra!!! Para encerrar os estrangeiros, passando dos alemães aos norte-americanos, consegui o famoso romance policial Laura, de Vera Caspary. Tudo bem que não é tão famoso assim, mas além de ser bastante apreciado no exterior, já foi inclusive adaptado para o cinema. Esse foi indicação da querida Claire Scorzi, que tem um canal literário delicioso no Youtube. Eu, que admiro demais a Claire, não pude deixar de ficar curioso para ler Laura, tão elogiado por ela, que é, sem sombra de dúvidas, uma respeitável leitora! E como não sou muito de ler romances policiais, resolvi experimentar esse.

Agora, regressemos ao Brasil! Ando numa fase meio modernista; daí, os títulos que escolhi. Dei preferência, claro, aos livros da Cosac Naify, mas da minha lista pessoal de futuras aquisições, só havia dois: Convergência (Murilo Mendes) e Malagueta, Perus e Bacanaço (João Antônio). O primeiro veio suprir a carência de poesia concreta da minha estante, e fiquei até curioso com os chamados murilogramas. O outro é coletânea de contos bastante referenciada quando se fala em prosa moderna dos anos 60. Do contemporâneo Milton Hatoum, comprei Relato de um Certo Oriente. Tinha separado pra ler este ano os Dois Irmãos, mas quando soube que este último se relacionava com o que comprei este mês (embora de forma tênue, na pessoa de um personagem), não hesitei em antecipá-lo. Por último, dos caros cearenses, criei vergonha na cara e comprei o tão desejado romance Aldeota, de Jáder de Carvalho, o autor que deu nome ao prêmio literário que conquistei em 2010. Da adorável Rachel de Queiroz, adquiri sua obra obra-prima, Memorial de Maria Moura, que com certeza vou ler antes do fim do ano! Quem leu minha resenha do livro Cordéis, sabe que fiquei morrendo de vontade de ler a obra mais importante de Patativa do Assaré: Cante Lá que Eu Canto Cá. Pois é... Já providenciei rsrsrs; se não este ano, será lido no próximo! E, finalmente, a título de curiosidade, aproveitando uma promoção, obtive O Objeto Ausente, de Carlos d’Alge, o português mais cearense de todos rsrsrs. Trata-se de um livro de memórias do Carlos, quem eu só conhecia dos ensaios literários que ele fez para os romances portugueses daquela coleção Os Clássicos da ABC Editora, que já foi matéria de uma das mais entusiasmadas postagens deste blog rsrsrs.

Por último (e agora é o último mesmo rsrsrs), consegui o folheto de cordel A Estátua do Jorge, de Alberto Porfírio, que foi um dos cordelistas mais renomados do Ceará, cuja fama se estendeu até o exterior. Preferia uma edição em livro, mas tive dificuldade de achar; acabei ficando com este folheto, que é um dos mais apreciados dele, como uma feliz amostra de mais um ilustre cearense que não conhecia.

Perdão, se escrevi demais! Tenho que confessar que este blog está se tornando numa espécie de diário literário ou memorial de leituras mais particular do que eu previa rsrsrs.

Daniel Coutinho

*** 

SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Cordéis, de Patativa do Assaré - RESENHA #13

Sempre pensei que Patativa fosse desses poetas analfabetos, cujo talento, apreciado por muitos, tivesse sido transposto em livros por seus admiradores. Só agora descobri que Patativa sabia ler e escrever, além do que, era homem letrado. Não obstante ter frequentado a escola por apenas quatro meses, tinha gosto pela leitura e lia grandes nomes da língua portuguesa como Camões, Gonçalves Dias, Castro Alves, Coelho Neto, Olavo Bilac, dentre outros. O fato de ter citado basicamente poetas não é mera coincidência, uma vez que a paixão de Patativa era mesmo a poesia.

Homem de vida simples, nunca abandonou seu ofício de agricultor, o que não impedia o desenvolvimento de seu estro poético. Antônio Gonçalves da Silva, como realmente se chamava, tinha uma memória incrível, ao ponto de poder recitar todos os seus poemas em sua idade mais avançada. O nome “Patativa” era dado a todos os bons repentistas de seu tempo, que eram diferenciados segundo seu lugar de origem; daí sua denominação popular “Patativa do Assaré”. Sua obra mais famosa, Cante lá que eu canto cá (1978), representa a síntese de todo o seu talento, mas não foi a obra que escolhi para meu primeiro contato com Patativa.

Ao longo de sua carreira, Patativa sempre cultivou o cordel, gênero bastante comum e apreciado em todo o nordeste. O cordel geralmente retrata uma estória popular em forma de poesia rimada, e é divulgado em folhetos baratos que são vendidos nas feiras. Antigamente, eram constantemente recitados nos saraus do interior, costume que, hoje, praticamente se perdeu. Os cordéis de Patativa, contudo, fogem a esse padrão convencional de aventuras e causos bizarros para divertir o público. No geral, trazem sempre uma intenção, seja de crítica ou denúncia social. Patativa expõe a realidade do povo nordestino, mencionando especialmente os problemas em decorrência da seca. Luiz Tavares Júnior percebe no cordel de Patativa a união de três fatores: a natureza telúrica, a denúncia social e o espírito lúdico.

Em 1993, por iniciativa do professor Gilmar de Carvalho em parceria com a SECULT-CE, é lançado uma caixa especial, reunindo todos os cordéis divulgados por Patativa em seus folhetos. De limitada tiragem, a edição é logo esgotada. Apenas em 1999, a editora da UFC relançaria os Cordéis de Patativa, pela “coleção nordestina”, sendo esta a edição que possuo. Esta edição contém xilogravuras de vários artistas consagrados, quase todos de Juazeiro do Norte. Foram coligidos dezesseis cordéis de desigual tamanho, seguindo diferentes temáticas. Patativa explora além da linguagem padrão, a reprodução da fala do nordestino do sertão, não abrindo mão da musicalidade dos versos, de maneira que quando recitados, temos uma impressão mais profunda deles.

A coletânea abre com a composição mais famosa de Patativa, imortalizada na voz de Luiz Gonzaga: A triste partida. Apreciado por pessoas de todos os graus de instrução, esse cordel retrata a situação do agricultor que, no século passado, por causa da seca, era obrigado a deixar sua terra para buscar meios de sobrevivência em outro lugar. Eis uma realidade bastante comum que foi por muito tempo a causadora de inúmeros sofrimentos para o povo nordestino, além de ter sido assunto para muitas outras obras de grandes escritores brasileiros. A triste partida é, sem dúvida, a composição mais perfeita de Patativa.

História de Abílio e seu cachorro Jupi segue o estilo tradicional que popularizou o gênero cordel em todo o país. Traz uma divertida estória de cunho moralizante, onde o bem e o mal são personificados nos filhos do senhor Benvenuto: Grigório e João, que eram incorrigíveis ladrões; e o pequeno Abílio, dono do cachorro Jupi. Com a morte do pai, Grigório e João pretendem desfazer-se de Abílio, perdendo-o na floresta, para praticarem seus crimes com mais liberdade. Jupi, que também iria ser morto, acaba salvando seu pequeno dono e o ajuda a sobreviver no mato. A Providência ainda terá participação importante para a recompensa do justo e o castigo dos infames.

As façanhas de João Mole traz a divertida estória de um homem que vivia apanhando da mulher e da sogra, até que um dia, cansado de apanhar, resolve dar inversão aos papéis. É importante lembrar que Patativa, muito tradicionalista, não defende a agressão, mas a submissão da mulher; de maneira que seus cordéis, por diversas vezes, buscam alertar os sertanejos quanto a situações perigosas, como em O doutor Raiz, onde critica os vendedores das chamadas “garrafadas”, que ao invés de curarem moléstias, antecipavam a morte de muitos. Quanto à questão da submissão da mulher, pode parecer um tanto machista para os dias atuais, mas deve-se levar em conta o contexto cultural em que o poeta foi criado, e que ele alerta para o abuso de poder da mulher dentro do ambiente familiar. Mesmo no contexto atual, o respeito ainda é indispensável entre homens e mulheres.

O meu livro é um dos meus preferidos. Nele, Chico Braúna, homem do campo, sem instrução escolar, irá enaltecer os valores dos sertanejos que têm muito conhecimento a partir do livro mais importante que é a natureza. A forma como Patativa conduz esse cordel, os exemplos de sabedoria popular, o enaltecimento da terra, tudo enfim colabora para fazer desse cordel um dos pontos altos da coletânea.

Vicença e Sofia ou o castigo de mamãe trata de racismo. Romeu decide casar com a negra Vicença, contra a vontade dos pais, que mesmo sabendo das boas prendas da moça, rejeitam-na por sua cor. O irmão de Romeu, por outro lado, casa com Sofia, moça branca e bonita. O destino de cada casamento provará que a cor da pele em nada influi no caráter do indivíduo. Esse cordel, mesmo tratando de um tema sério, é um dos mais engraçados.

ABC do Nordeste flagelado traz uma estrofe para cada letra do alfabeto. A temática ainda é a pobreza e a condição social do nordestino sob a circunstância da seca, temas também explorados em A triste partida e Emigração. Em Glosas sobre o Comunismo, Patativa faz uma severa crítica a esta ideologia política, valendo-se inclusive de justificativas religiosas, pois a religiosidade cristã permeia toda a sua obra, sendo mais perceptível nos cordéis O padre Henrique e o Dragão da Maldade, Saudação ao Juazeiro do Norte e Antônio Conselheiro. Patativa assina suas Glosas sobre o Comunismo de maneira peculiar, fazendo na última estrofe um acróstico de PATATIVA; recurso já utilizado em História de Abílio e seu Cachorro Jupi.

A coletânea se encerra com a História de Aladim e a lâmpada maravilhosa. Tal como História de Abílio e seu cachorro Jupi, obedece a tendência mais pura do cordel popular, que é o entretenimento a partir da fantasia. Inspirado numa lenda d’As Mil e uma Noites, esse cordel destoa totalmente do resto do livro, sendo o único que não traz o Nordeste como pano de fundo. Nem por isso deixa de ser interessante. Nele, Patativa abusa da fantasia na capacidade ilimitada de poder do gênio da lâmpada, além das diversas peripécias e reviravoltas que instigam o imaginário popular. Talvez por ser o mais diferente de sua produção cordelista, não foi incluso na edição de 2006, publicada pela editora da UFC sob o título Cordéis e Outros Poemas. Esses “outros poemas” aludidos pelo título são apenas dois: Cante lá que eu canto cá, que dá título à obra de 1978; e A terra é naturá, da mesma coletânea já citada. Li os dois: o primeiro é uma pequena obra-prima que faz uma comparação entre o poeta da cidade e o poeta do campo; o outro é o desabafo de um sertanejo ante uma desapropriação de terra, proveniente da divisão de bens entre seus irmãos herdeiros.

Patativa é um escritor de acentuada simplicidade, o que acaba sendo a força de sua poesia; essa influência telúrica, o conhecimento sobre seu povo e costumes populares, tudo isso se configura de maneira aprazível em sua obra, especialmente quando utiliza a reprodução fiel do linguajar típico dos sertanejos. Seu mérito garantiu-lhe por cinco vezes o título de doutor honoris causa e sua obra é objeto de estudo até mesmo fora do Brasil. É admirável como nunca abandonou suas raízes e o fato de seu reconhecimento em vida não ter lhe despertado grandes ambições. Morreu o que sempre foi: agricultor de vida simples, cantor de seu sertão e de seu povo.

A única particularidade que me incomodou em sua obra é que, fazendo uma visão geral de todo o conjunto dela, identifiquei ser muito persistente a mensagem de que o nordestino é um ser sofrido, chegando a ser vítima de um governo que lhe discrimina. As temáticas: sofrimento, pobreza, fome e seca acabam evidenciando o que muita gente do sul pensa sobre o Nordeste. Até entendo que a intenção de Patativa era outra e que sua preocupação era denunciar as sofríveis condições das classes mais baixas de sua sociedade, a fim de chamar atenção para elas, para que fossem beneficiadas. Posso também assinalar a força de intenção político-social que ofusca a intenção puramente artística que eu tanto aprecio num autor. Contudo, reconheço que a arte sobrevive no âmago de sua poesia mais militante.

Avaliação: ★★★★

P.S.: Estou totalmente convencido de que preciso ler Cante lá que eu canto cá!

Daniel Coutinho

*** 

Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Hernani, de Victor Hugo - RESENHA #12


*


Atenção! Esta resenha contém alguns spoilers, no sentido de que contei boa parte da trama do Hernani; mas isentei-me de contar o final, ok?!

Fã de romances brasileiros do século XIX; enquanto lia muitos deles, achava sempre alguma referência a espetáculos, geralmente nas cenas em que os personagens iam ao teatro, sendo a ópera Ernani, de Giuseppe Verdi, a mais recorrente. Sempre que me deparava com este título, ficava curioso para saber do que se tratava. Descobri que a ópera do Verdi foi composta a partir de Hernani, melodrama em 5 atos, do francês Victor Hugo. Resolvido a ler a tão aludida peça, tive dificuldade para encontrá-la em português, mas graças à coleção das Obras Completas de Victor Hugo, lançada pela Editora das Américas nos anos 50, pude finalmente ler Hernani (localizado no volume 37).

Confesso que tive um medinho de ler esse livro. Nunca tinha lido Victor Hugo traduzido do original; quando muito, li aquela adaptação d’Os Miseráveis, feita pelo Walcyr Carrasco. Adorava a história e desejo muito ler a versão completa, mas sempre com certo medo, por se tratar de Victor Hugo. Imaginava Hernani como obra complexa, ao estilo Shakespeare, e de fato sua leitura não foi lá muito fácil, embora tenha sido mais simples do que supunha. Achei a obra engenhosa, bem escrita e bastante adequada ao palco. Entendo que o teatro limita em grande parte o poder de fabulação do autor, o que será compensado em cena. Tive a impressão de que se ao invés de estar lendo, estivesse assistindo à representação, faria julgamento mais justo ao Hernani.

Escrito em 1829, encenado e publicado em 1830, Hernani trazia em sua edição princeps o título alternativo de A Honra dos Castelhanos que, a meu ver, é mais condizente com a peça do que o título principal. Isto porque, para você realizar uma boa leitura da obra, é de suma importância compreender as questões de honra que prevaleciam na Espanha da Idade Moderna, mais especificamente no século XVI. As atitudes dos personagens podem parecer absurdas a um leitor contemporâneo que, se não aceitar os costumes e crenças da época, julgará o livro pouco convincente. Infelizmente, não tive ninguém para me fazer esta advertência. No entanto, fui cuidando de entender certos pormenores no decorrer da leitura, o que contribuiu bastante à minha compreensão.

Logo no prefácio, Victor Hugo defende, enquanto escritor romântico, a necessidade de dar maior liberdade à Literatura. Percebi um tom de decepção em suas palavras ao revelar que teve de censurar algumas cenas do Hernani, para que fosse ao palco. Ele demonstra grande desejo de um dia ver a versão original de sua obra, na forma como foi concebida, o que se realizará tempos depois. A tradução que li já é dessa versão sem censura.

A história se passa no tempo de Martinho Lutero. Hernani é um jovem proscrito, filho de um homem que foi morto por ordem do pai de D. Carlos, rei da Espanha. Hernani tem sede de vingança, mas sua prioridade ainda é fugir com a bela Doña Sol, que está prometida a seu velho tio, D. Ruy Gomez de Silva, duque de Pastraña. O que o jovem exilado não sabe é que D. Carlos, o rei, é também seu rival.

Após descobrir que Doña Sol encontra-se às escondidas com Hernani, o rei segue seu encalço. Numa noite, D. Carlos, passando-se por Hernani, adentra o quarto de Doña Sol e dá dinheiro à aia da bela dama para que se cale e o esconda num armário do aposento. Quando Hernani finalmente chega, Doña Sol o recebe com toda a ternura de seu amor, o que aborrece o rei, que tudo escuta de seu esconderijo. Em determinado momento, ele surpreende o casal, mas não se identifica, apresentando-se unicamente como um apaixonado de Doña Sol. D. Carlos e Hernani duelam, mas a chegada de D. Ruy interrompe a luta.

O primeiro pensamento do duque é de traição, ao ver dois homens no quarto de sua noiva. A situação não deixa de ser engraçada. D. Carlos então se identifica, para espanto de todos em cena, e conta que morreu seu avô, o imperador da Alemanha, e que sua presença dá-se da necessidade de pedir conselhos ao duque, pois pretende candidatar-se ao império. O particular caso explica a discrição, o lugar e a hora dos acontecimentos. Hernani é identificado como parte do séquito do rei. Antes de partir Hernani, Doña Sol combina discretamente com ele um encontro à meia-noite para o dia seguinte, o que não passa despercebido a D. Carlos, que antecipa mais uma vez seu rival.

As mil propostas do rei não convencem Doña Sol, que alega ser Hernani o dono de seu amor. D. Carlos, enfurecido, tenta raptá-la; a bela resiste-lhe e consegue tomar-lhe um punhal com o qual o ameaça. A essa altura, chega Hernani que desafia o rei, que se nega a lutar com um bandido, especialmente agora que o mesmo já o conhece por rei. Hernani deixa livre a D. Carlos, mesmo este jurando-lhe vingança por sua ousadia. Confesso que não entendi a atitude do nosso herói, mas as questões de honra de que já falei podem explicar tal procedimento, o que ficará ainda mais claro no Ato IV. Após a partida do rei, Doña Sol propõe ao amante que fujam, mas ele hesita, advertindo para os sofrimentos que poderão advir para ela. A apaixonada amante persiste em seguir seu amado, mas o séquito do rei se aproxima, forçando Hernani a escapar sozinho.

É chegado o dia do casamento de Doña Sol com seu tio. Uma hora antes da cerimônia, chega ao palácio do duque um peregrino pedindo abrigo, o que lhe é logo concedido. Este peregrino não é outro senão Hernani, que logo se identifica, mas isso não muda a atitude do duque para com ele, uma vez que o hóspede é sagrado para um espanhol (eis outro fato que desconhecia). Mesmo descobrindo finalmente que seu hóspede e Doña Sol são amantes, e mesmo aparecendo o rei exigindo a cabeça de Hernani, o procedimento do duque é sempre o de proteger o seu hóspede. Para tanto, D. Ruy esconde Hernani em lugar seguro. A recusa do duque revolta o rei que, a troco disso, carrega Doña Sol consigo. Eis o que D. Ruy não pode impedir, pois sua honra não lhe permite contrariar o rei. Ele ainda tenta oferecer sua própria cabeça, mas o rei é enfático em sua fala “— Escolha. Doña Sol ou o traidor. Preciso de um dos dois.” (Hernani, Ato III, Cena VI). Como entregar seu hóspede seria ato indigno, D. Ruy consente em que levem Doña Sol. (Tá vendo como era importante adverti-los a compreender e aceitar as questões de honra de que falei?).

É importante deixar claro que é verdade sim o que disse o rei sobre sua intenção sobre o império da Alemanha. A princípio, nem dei tanta importância aos diálogos que tratavam desse assunto, julgando-os menos importantes. Eis uma lição que aprendi: nada em Victor Hugo é menos importante. A pouca atenção que dei a essas passagens teve como consequência a releitura de muitas cenas rsrsrsrs. A sede do rei pelo império da Alemanha e o desenrolar desse núcleo narrativo resultarão visivelmente no destino do casal principal. Mas não nos esqueçamos do duque que, após a saída do rei, pretende duelar com Hernani, pois, embora seja seu hóspede, revelou-se amante de Doña Sol. (Quando uso o termo “amante”, não é em sentido pejorativo, ok?). Nosso herói reconhece sua “ingratidão”, dado o caráter digno de seu anfitrião; por isso, entrega-se ao duque sem relutar, mas pede-lhe que, por favor, antes de eliminá-lo, deixe-lhe salvar Doña Sol e vingar a morte de seu pai. D. Ruy consente. Chegamos então ao final do Ato III.

Tive grande dificuldade de ler o Ato IV, uma vez que os acontecimentos vêm sem nenhuma conexão com o ato anterior. Só ao final dele, pude juntar as peças e compreender os fatos que, neste ato, são decisivos. O que se sucede então é demasiado surpreendente e encaixa-se tão perfeitamente com o último ato que, por sua vez, traz um final arrebatador. Penso que já contei até demais do Hernani, mas precisava fazer isso, recapitular tudo. (Acabei de fazer a advertência no começo desta postagem rsrsrs). Quanto aos acontecimentos do quarto e quinto atos, prefiro calar-me finalmente, pois seria desumano privar o leitor de tão maravilhosa experiência onde se confirma a admirável genialidade de Victor Hugo. Ainda estou chocado. Experiência semelhante à de O que Tinha de Ser..., do Mário de Alencar, que já tem resenha aqui.

O que cobrei de Hernani e não recebi nos primeiros atos, reembolsei com lucros a meu favor nos atos finais. Foi uma experiência deveras enriquecedora e marcante. Contudo, julguei algumas lacunas deixadas pelo autor ao longo do enredo e a falta de conexão em algumas passagens (como entre o Ato III e o Ato IV) como senões que poderiam ter sido aperfeiçoados. Pode parecer prepotência de minha parte criticar a obra de Victor Hugo; contudo, sou o primeiro a reconhecer que não sou ninguém para realizar tal empresa. Na verdade, não fiz uma crítica; apenas observei detalhes que me incomodaram (ou que me fizeram falta) durante a leitura, estando sempre consciente de ser ainda um inexperiente leitor de clássicos universais.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

*** 

Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com